Monday, November 12, 2007

Ávida em gotas

A verdade é que sempre chovia na região de Voltares quando decidia me sentar de frente à janela que dá para os fundos de nossa casa, de onde avistava o horizonte, bem como os patos, marrecos e alguns outros bichos que minha mãe ganhara por herança, tudo que restou da morte de minha avó, sua mãe, mas isso era segredo meu. Meu avô foi o segundo a ir dessa para melhor, morte natural, como merecidamente haveria de ser. Imediatamente após sua morte começou a invasão de corretores e investidores por todos os lados, todos atrás de oportunidade de negócio com o mais novo herdeiro; diziam eles que meu avô não era fácil de lidar. Meu pai, depois do ocorrido, “abandonou” de vez minha mãe, uma vez que toda a riqueza ficara para ele e consequentemente, tudo e todas que precisasse. Desse dia em diante ela, minha mãe, optou por não mais sair de casa, sentia vergonha, assim dizia.
O Senhor Sebastião Voltares, meu avô, fora o homem mais rico e poderoso da região, foi ele também o fundador da cidade, era um verdadeiro batalhador, amado e respeitado por muitos, ao contrario de seu filho e legado. Minha mãe, filha de um turco comerciante de tecidos, era a mulher mais linda e desejada que aparecera naquela redondeza e que de certa forma acabou por ser forçada, não por meu avô, mas pela situação, a se casar com meu pai, o herdeiro.
Antes de meu avô ir de fato, fui visitá-lo em seu leito. Ele sempre sorria de forma doce e singela à minha presença. Mesmo com toda a riqueza era honesto e incapaz de maltratar ou desmerecer qualquer um, mesmo o mais insignificantes dos seres, postura essa que por vezes deixava-me confuso, contraditoriamente ele implicava com os leiloeiros; apreciava mais os falsários. Nunca soube a verdadeira razão de sua proposição, às vezes penso que tenha a ver com os princípios “Don Corleonicos”. Agachado ao pé da cama e com os olhos úmidos, senti sua mão tocar meus cabelos e sua voz quase sem força me dizer “olá futrico” – era assim que me chamava. Com dificuldade continuou – obrigado meu neto, por tudo que têm feito por nós. Apesar de nunca ter mencionado nada a ninguém sobre minha capacidade, sabia que era justamente a isso que ele se referia. Meu avô era um sábio e por tal percebia que se a região fora privilegiada em abundancia de águas a partir de meus cinco anos de idade, eu teria que fazer parte de tudo isso, não seria apenas pura coincidência. Chorei a noite toda e prometi a mim mesmo que no dia que meu avô enfim nos deixasse, seria também a última vez que o papel sentiria a força de minha mão.
Os anos se passaram e a região que outrora fora fértil, encontra-se completamente à “Vidas Secas”, perdemos praticamente tudo e não mais os leiloeiros ou até mesmo os falsários nos implicam, nem eles, viu meu avô. Não mais avisto o horizonte pela janela aos pedaços e os patos, marrecos e outros bichos há muito nos serviram de alimento. É, definitivamente os tempos são outros.
Mas há sempre um fio de esperança. Hoje, por exemplo, voltou a chover.

Carlos Tche
Texto publicado no site da revista PIAUI