Monday, January 29, 2007

Molduras

Revoltado da forma como o tempo e o espaço estavam sendo controlados, ele resolvera cruzar as barreiras do inimaginável para chegar a Babilu e falar com o tal poderoso ser do local. Não, ele nunca fora a igreja, detestava religião e por isso tão pouco sentia prazer pelos princípios panteístas, mas se sentia enganado e ao mesmo tempo desesperado, não se agüentava tamanha sua indignação. Por esse motivo, e não fora o único, que decidira abandonar sua total incredulidade de um grau cético incomparável e se deslocar da Terra aos Céus para ter uma conversa séria com Deus.

E como disse, o fez. Cruzou a barreira com tamanha imponência que quando menos notara, lá estava ele, além dos portões, dentro dos Jardins da Babilônia e mais decidido que nunca a encontrar o conhecido Satanás às avessas. Alguns guardas que protegiam a região – e não me perguntem o porquê de guardas em um local titulado de paraíso – se assustaram com sua presença e foram de encontro ao nosso personagem principal na intenção de lhe barrar, mas seu olhar fixo e certeiro como uma flecha não deixava duvidas de suas aspirações e desejos, fazendo com que os mesmos retraíssem, deixando livre a passagem pelo corredor celestial. Tenho certeza que alguns mais crédulos nesse momento discordarão da força de nosso amigo tupiniquim e acreditarão friamente que foi o próprio Deus que sabendo de suas pretensões, ordenou a legião que o deixasse passar. Não expressarei minha doxa nesse momento, uma vez que ainda há muita história por vir, portanto me reservo, acreditando no livre arbítrio e na capacidade interpretativa de meus leitores.

Chegando ali, à porta principal que se mantinha aberta, ganhou o salão central, este com pilastras enormes, não banhadas a ouro como descritas em vários manuscritos, mas feita em madeira e esculpida por alguém até então conhecido de nós, no piso, nada de mármore ou pedras preciosas, chão batido, o teto também não reluzia vidraças angelicais. De certa forma tal constatação lhe trouxe particularmente o gozo. Decidiu não mais se prender a detalhes, precisava encontrar quem tanto procurava. Perguntou a uma senhora que se sentava à direita da entrada cujo nome Maria. Ela, calada, ergueu o rosto e olhou-o com tal desprezo que o mesmo preferiu não esperar uma possível resposta. Atravessou rapidamente mais dois cômodos chegando a um grande átrio. Ao centro uma figura que lhe pareceu familiar, e o era, tratava-se da famosa Esfinge derrotada no livro de Sófocles. Preferiu então não se arriscar e apenas desviou o olhar para um outro saguão que se construíra a sua esquerda – não havia tempo para enigmas ou coisas do gênero. Já no saguão avistou um homem e foi direto.

- Preciso falar com Deus

- Todos nós precisamos – disse ele, calmo e de forma irônica.

- Não, é sério, gostaria muito de vê-lo.

- Todos nós gostaríamos.

- Olha, não estou com paciência e tempo, isso é muito importante para mim...

- Paciência, tempo, são palavras não muito usuais por aqui. Aliás, quando foi a ultima vez que as ouvi mesmo... Não me recordo no momento.

- Penso que você não pode me ajudar – disse isso e tentou sair novamente, mas foi seguro pelo mesmo homem.

- De onde vens que não sabes onde o mestre se encontra?

- Venho da Terra.

- Da Terra... hummm... Agora entendo tamanha necessidade de falar com ele. Aquilo lá é um inferno – rapidamente o homem olhou para cima, algo que chamou sua atenção – Desculpa senhor...

- Porque olhou para cima?

- Ora, porque achas?

- Não sei, por isso pergunto.

- Porque é justamente lá onde ele se encontra nesse momento.

- Como assim?

- Como assim, como assim... Como assim o que? Nunca lhe ensinaram que ele sempre está acima de nós.

- Mas eu pensei...

- Pensou errado meu rapaz, aliás, todos nós pensamos antes de entrar aqui. Mas não se preocupe, você um dia vai entender... ou não... – sorrindo, novamente de forma irônica.

- E como chego até ele?

- Não há como chegar até ele.

- E como vou falar com ele?

- Você não vai... Ninguém fala com ele... Será que não lhe parece claro?

Ficou calado por um momento. O homem então lhe segurou os ombros usando ambas as mãos e concluiu.

- Volte para o lugar de onde veio e tente aceitar ou esqueça que esteve aqui.

Confuso, mas ciente de que aquilo era o melhor fazer naquele momento, olhou para cima, novamente para o homem e suspirou.

- Obrigado.

- Por nada.

Começou a caminhar em direção a saída ao mesmo tempo em que ouviu o homem com a voz triste lhe dizer.

- Não fique magoado amigo tudo vai se esclarecer, e mais, agora você tem o privilégio, a possibilidade da escolha, coisa que nenhum de nós aqui teve.

Nesse momento, pela primeira e última vez, parou, olhou ao redor e de repente aquilo que a priori não havia lhe incomodado, agora, de forma clara lhe era notório. Todos, de forma geral, sem nenhuma exceção, se mostravam tristes, cabisbaixos e sem vida como ele, notou também que não havia pássaros voando e flores sobre as planícies, e que o céu acima do céu não era azul, e então voltou-se novamente ao homem.

- Estou realmente no lugar certo?

- Sim, pena que em uma hora imprópria.

Ele se virou novamente e antes de partir:

- Só mais uma coisa, posso saber seu nome?

- Claro... me chamam Dante.

* * *

Porque não temos o poder de eternizar o momento? Porque não podemos simplesmente encadernar o momento e coloca-lo em uma estante, para que assim, sempre que quiséssemos sentir aquele prazer novamente bastava-nos sentar em uma poltrona e re-desfrutar do mesmo com uma singela leitura? Melhor, porque não o colocamos em uma linda moldura, tomamos posse de um, dois preguinhos, o martelo e dependuramos esse mesmo momento no corredor da casa ou na sala de troféus? Sim, pois momentos que merecem ser eternizados devem ser tratados como grandes conquistas, como verdadeiros troféus.

É bem verdade que muitas são as tentativas de eternizar o momento; bibelôs, lembrançinhas – tenho um amigo que gastou mais dinheiro com lembranças que trouxe de sua última viagem para Búzios do que na própria viagem. Diz ele que assim eternizaria o momento – verdadeiramente não acredito. Outra forma de tentar eternizar um momento, e essa realmente considero uma das piores, é a fotografia. Não gosto desses tipos de fotografias e explico o por que. Pelo simples fato de que as mesmas não eternizam o momento, no máximo são saudosistas, lhe dão a certeza de que um dia, em um pequeno momento da sua vida, em algum lugar, você foi miseravelmente feliz. Não gosto dessas fotografias. Não quero ser miseravelmente feliz, quero a eternidade de um momento no todo e não em um momentâneo sorriso estampado em um papel que ainda por cima passará na mão de muitos que não darão a mínima para ele. Não gosto de fotografias que tentam representar o momento. Reflita comigo, em um filme de exatamente uma hora – película – temos exatamente sessenta minutos, cada minuto possui exatamente sessenta segundos, cada segundo, exatamente vinte quatro fremes. Fremes são como fotos. Fotos são imagens estáticas e tendo como referência o todo, sem vida. Os fremes, ou as imagens, apenas ganham vida se estão colocados em ordem e projetados um após o outro gerando assim a sensação de movimento. Fotos aumentam a saudade, e nem sempre sentir saudades é bom.

Então porque não podemos eternizar o momento? Essa era a única pergunta que nosso herói gostaria de fazer a Deus. Ele queria, assim como eu e talvez você, sentir novamente o prazer do momento entrando pelas suas entranhas preenchendo cada espaço oco e não apenas lembrar que o mesmo existiu e que não tornará a voltar. Pois, corajosamente, assumo o lugar de Deus nesse momento e respondo. Não o conseguimos por sermos seres insatisfeitos, por sempre querermos mais e mais. Estúpida e Inconscientemente acreditamos que, eternizado esse ou aquele momento, não teremos a chance de viver “outro melhor”. Nossa fraqueza e nosso medo são nossos maiores inimigos. Enquanto isso, nos arriscamos aqui e ali em busca de uma felicidade que sempre esteve, está e estará um pouco abaixo de nossos narizes, dentro de um organismo que pulsa desesperadamente.

Apenas completando meu raciocínio, para que então exista um filme, ou melhor, um eterno momento de uma hora, projetado diretamente em nossa mente, precisaremos de no mínimo oitenta e seis mil e quatrocentos fremes, ou melhor, fotografias.

Viva a Kodak.

Tuesday, January 23, 2007

In - Sônia


O rosto marcado, não pela idade, mas pelo tempo, dor e luta, refletia-se no vidro do ônibus da empresa Zefir ao dia quinze de novembro do ano um mil novecentos e setenta e três. Seu olhar era firme e decidido, resultado de quem vivera um tempo suficiente para ter a exata noção do que deveria ser feito naquele momento, e das consequências que isso acarretaria à sua vida. O medo da morte, insegurança quanto ao presente e futuro, isso não mais corroía sua mente, uma mente que agora era livre e despreendida desse mundo. Seu nome, Sônia Maria Lopes de Moraes. Antes de sair de casa, Sônia suspirou fundo, no seu próprio fundo, olhando cuidadosamente ao redor. Beijou delicadamente sua violeta que assim como ela não se encontrava em suas melhores condições, segurou com a mão direita um suvenir que ganhara de seu pai anos antes de tudo começar, pensou em chorar, exitou, os tempos eram outros, não havia o menor significado tal ato. Olhou para relógio na parede, passavam das oito e meia, então pensou; é chegado o momento. Caminhou calmamente em direção a porta da sala, mas antes de sair abriu a gaveta da estante e tomou posse de um pequeno crucifixo. Deu uma última olhada na casa, algo lhe dizia que seria a última, fechou a porta e foi.

Há exatos um mil novecentos e quarenta anos antes deste acima citado, um homem, filho de Elias, Jesus, preparava-se para ser crucificado, entrar para história e mudar os rumos da humanidade, isso segundo relatos de um de seus apóstulos, Marcos, em seu evangélho: “Os soldados conduziram-no ao interior do pátio, isto é, ao pretório, onde convocaram toda a corte. Vestiram Jesus de púrpura, teceram uma coroa de espinhos e colocaram na sua cabeça. E começaram a saúdá-lo ‘salve rei dos judeus !’. Davam-lhe na cabeça com uma vara cuspiam nele e punham-no de joelhos como para homenageá-lo. Depois de terem escarnecido dele, tiraram-lhe a púrpura, deram-lhe de novo as vestes e o conduziram para fora para crucificá-lo...” “...conduziram Jesus a um lugar chamado Golgota, que quer dizer lugar do crânio. Deram-lhe de beber vinho misturado com mirra, mas ele não aceitou. Depois de o terem crucificado, repartiram suas vestes, tirando a sorte sobre elas, para ver o que tocaria a cada um. Era a terceira hora quando o crucificaram. A inscrição que motivava a sua condenação dizia “O rei dos Judeus”. Crucificaram com ele dois bandidos, um a sua direita e outro a sua esquerda, cumpriu-se assim a escritura que diz: ele foi contado entre os malfeitores.” “Jesus deu um grande brado e expirou. O véu do templo rasgou-se então de alto a baixo em duas partes. O centurião que estava a frente de Jesus ao ver que ele tinha expirado assim disse: ‘Este homem era realmente o filho de Deus’.”

Sônia estudou no colégio de Aplicação da antiga Faculdade Nacional de Filosofia e, posteriormente, na Faculdade de Economia e Administração da UFRJ, mas não chegou a se formar. Ela foi presa, pela primeira vez, no dia primeiro de maio do ano de um mil novecentos e sessenta e nove, exilada logo em seguida por três anos na França. Ela era filha de Cléa Lopes de Moraes e João Luiz Moraes, este, Tenente-Coronel da Reserva do Exército Brasileiro e professor de matemática. É dele o trecho a seguir, parte de uma carta que ironicamente intitulo de “evangélho segundo João Luiz Moraes”: “Sônia Maria Lopes de Moraes, minha filha, teve seu nome mudado após o seu casamento com Stuart Edgar Angel Jones, para Sônia Maria de Moraes Angel Jones. Ambos foram torturados e assassinados por agentes da repressão política, ele em 1971 e ela em 1973. Minha filha foi morta nas dependências do Exército Brasileiro, enquanto seu marido Stuart Edgar Angel Jones foi morto nas dependências da Aeronáutica do Brasil. Tenho conhecimento de que, nas dependências do DOI-CODI do I Exército, minha filha foi torturada durante 48 horas, culminando estas torturas com a introdução de um cassetete da Polícia do Exército em seus órgãos genitais, que provocou hemorragia interna. Após estas torturas, minha filha foi conduzida para as dependências do DOI-CODI do II Exército, local em que novas torturas lhe foram aplicadas, inclusive com arrancamento de seus seios. Seu corpo ficou mutilado de tal forma, a ponto de um general em São Paulo ter ficado tão revoltado, tendo arrancado suas insígnias e as atirado sobre a mesa do Comandante do II Exército...”

Em seu livro “Ensaio sobre a cegueira”, Saramago descreve uma sociedade que começa a conviver com a realidade de não mais enxergar. No decorrer do romance, sem distinção de sexo ou raça, valores, crédulos e bens, começam a perder a visão. Em meio a tal situação de catarse, sentimentos interiores, vão sendo vomitados, e passamos nós leitores a enxergar o que de pior e melhor existe na humanidade. O que para muitos poderia soar como uma simples ficção ou coisa do gênero, não passa de uma metáfora de nossa sociedade, de nossa realidade. Estamos cegos sim, uma cegueira cultural, moral e porque não, espiritual. Não gostaria de me arriscar em assuntos de cunho religiosos, o próprio Jesus não tem culpa com o que dele fizeram, mas bem sei que se torna impossível desatar e sendo assim, não tocar na ferida idolátrica de uma parcela do mundo ao me arriscar em tal comparação, mas o que diferencia nossa personagem Sônia Maria Lopes de Moraes, filha de João Luiz Moraes, de Jesus, filho de Elias? Pois lhe digo, ela talvez tenha sofrido muito mais durante as quarenta e oito horas de tortura do que ele nos seus trinta e três anos de vida. Principalmente por que não era dela o papel de sofrer a dor de uma nação, ela não nasceu para tal, não fora escolhida para tal, e sim se pré-dispos sem cobrar nada de ninguém, não pediu hora nenhuma que chorassem por ela, fez em nome de um ideal. Sônia era de carne e osso, como eu e você, mas possuia algo mais, algo semelhante ao que moveu Fatiam Al-Najar, uma senhora de sessenta e sete anos, mãe de quatro filhos e quarenta e um netos, que no ano de dois mil e seis se atirou para morte em meio a uma guerra unívoca sobre o que resta de um território fadado ao aniquilamento e que em algum momento da história será lembrado como Iraque. Estamos cegos sim, jogamos as dores do mundo (chamado de pecado) sobre as costas de um único ser, e não vemos que a cada dia Sônias e Fátimas estão lutando e dando suas vidas, em meu e em seu nome, vivendo e morrendo por um mundo melhor, Sônia em setenta e três, Fátima em dois mil e seis, coincidência numérica ou não, trinta e três anos depois. Estamos cegos, uma weberiana cegueira que talvez não tenha cura, por quem ou o que você estaria disposto a morrer? Aos mais covardes, conforto, não me refiro apenas a morte física.

Sônia era Militante da AÇÃO LIBERTADORA NACIONAL (ALN), Fátima filha de Hamas. Fátima teve seu corpo dissolvido por granadas, Sônia, os restos de seu corpo foram apenas sepultados em onze de agosto do ano de um mil novecentos e noventa e um, após quase vinte anos de sua morte.

Tenho eu, em janeiro de dois mil e sete, vinte e sete anos, a mesma idade com que Sônia nos deu a vida, mas que se ainda estivesse viva, teria completado no ano de um mil novecentos e setenta e nove, ano de meu nascimento, trinta e três anos. E não me venha com essa de “outra coincidência numérica”, contento-me em acreditar que tais ocorrências casuais, tais números, sirvam apenas para lembrar-me que mais que do “irmão” de Jesuses, sou um pouco filho de Sônias e neto de Fátimas.

Ah... Sônia, essa não ressucitou passados três dias.

Os trechos foram retirados dos livros; Bíblia Sagrada e Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos a Partir de 1964 – grupo Tortura Nunca Mais.

Carlos Tche – cineasta e pseudo-escritor.

Monday, January 22, 2007

Verdades

E isso era verdade

A casa, os sonhos e a distorção

A luz que clareava

A dor de despertar

A mão que sempre lhe tocava

Mesmo quando ali não está

A chuva de verão

O sorriso que por fim alegra

O choro de engasgar

A musica que lhe tanto encanta

A cera sobre o altar

Na janela da imensidão

O vinho que embriaga

As roupas misturadas

Denunciando a distração

O pelo do seio arrepia

A um simples toar do refrão

Para muitos pura vaidade

Para nós

A pura explicação

Pois isso era nossa verdade

A cada amanhecer uma discoberta

Gruna na conjugação.

Pérolas, pétalas e marfim

Outra vez

Eu não sei no começo

Esse amor

Desconheço

Não venha me culpar


Pérolas

Onde eu vi

A luz na contra mão

A me cegar

Pétalas

E marfim

Inocente ilusão

E assim

Te espero

Em uma próxima estação


Outra vez

Outra bala perdida

Esse amor

Minha vida

Hora de acordar


O sol nos desperta

Com seu fogo abrasador

E quanto sem pensar

Meu corpo se entregou

A flutuar


Pérolas

Onde eu vi

A luz na contra mão

A me cegar

Pétalas

E marfim

Inocente ilusão

E assim

Te espero

Em uma próxima estação

Thursday, January 18, 2007

Hibridismo


Isso ocorreu na Suécia, era mais ou menos quatro e vinte dois da tarde, horário de Brasília. Um turco, filho de chinês, com mais ou menos dois metros e dois de altura vestindo uma camisa da seleção da Argentina, calçando tênis Nike produzido nos Tigres Asiáticos e protegido do sol por um chapéu Panamá fabricado no Equador – e são poucos os que sabem disso – atravessava a rua e se sentiu revoltado com um índio, um índio mesmo, que usando óculos Oakley e boné com um símbolo NY, acelerou seu Mercedes em sua direção quase o atropelando, isso após o guarda, iraniano, dar sinal para o mesmo arrancar, então pensou:

- Merde zu Globalization.

Wednesday, January 17, 2007

“Chama o dotôr”

Não muito diferente dos imortais boêmios que compuseram e ainda compõe a nossa história, e também não muito menos boêmio do que eles considero-me um completo apaixonado pelos botequins. O próprio nome “botequim” carrega consigo uma sonoridade particular. Para os que não o conhecem e até para alguns que não tiveram coragem suficiente de se arriscar a uma paradinha rápida, mesmo que para um ou dois chopinhos, três ou quatro palavrinha, vou logo lhes avisando, continuem firmes e fortes em seu propósito, pois como diz um amigo: “Esse será meu fim, passar a vida nos braços do botequim”. É realmente impossível desfrutar de sua doce e singela atmosfera por apenas uma “vezinha” só. As mulheres dos maridos que o digam. No botequim somos livres. É lá, definitivamente, o lugar mais neutro que existe. Porta adentro, o engenheiro se transforma em um filósofo respeitado, o juiz, extraordinário músico, e com um modesto “Ipi, Ipi”, é bem capaz de você se sentir uma pessoa carismática. Assim é o botequim.

Lembro-me que em um desses constantes momentos de inter-relação sócio-cultural, porque o botequim também é completamente imparcial e totalmente integrado, um amigo, Paxeco, que por unanimidade é o maior contador de piada que já conheci, ele me contou uma piadinha que gostaria de repassá-la, não por seu valor humorístico em si, e sim, pelo valor introdutório que a mesma carrega e que será de grande importância para essa “cônica”.

Contou ele que um dia dois amigos se encontraram em um botequim, e um deles começou a queixar-se de dores na região esquerda do que em latim é denominado tetis e em grego órkhis, os testículos. O companheiro todo preocupado com a situação não muito cômoda de seu amigo respondeu-lhe:

-Você tem muita sorte. Não há de ver que tive esse mesmo problema há poucos dias e tenho até o cartão do doutor que me curou.

O amigo então sacou o cartão e o entregou, sem notar que o cartão que entregara fosse de seu advogado e não do tal doutor. O outro que a essa altura pouco se importava com nomes e particularidades, simplesmente pegou o cartão e o guardou na carteira. No dia seguinte, ele não tardou em correr ao tal médico que na verdade era advogado. Chegou ao local, um pouco desconfiado, mas a dor ainda era insuportável, entrou na sala do tal “médico”, que nem de longe possuía características de um consultório, preferiu esperar sentado. De repente ele ouviu a porta se abrindo e pela sala entrar um senhor de barba serrada e um terno rica de giz, que de cara lhe interrogou, querendo saber do que se tratava. Ele, confuso, calmamente apontou para as regiões baixas e disse:

-E é bem a da esquerda.

O advogado deu uma risadinha marota e respondeu:

-Não meu amigo, o senhor deve estar enganado, o meu ramo é o do direito.

O cara todo sem graça levantou, caminhou em direção à porta e antes de fechar a mesma e sair, se virou e de forma concisa exclamou:

-Vai ser especialista assim, lá longe.

Meus avós me contam que antigamente, se referindo a 40, 50 anos atrás, quando as cidades eram afastadas uma das outras e mais afastadas ainda eram as fazendas e as pessoas quase não eram instruídas, se por acaso alguém passasse mal, sentisse alguma vertigem, contivesse uma gripe ou qualquer coisa do gênero, bastava colher alguns galhos terapêuticos no fundo quintal ou fazer algum chá de raiz amarga, que logo a dor ou o mal-estar se esvaia. Era um chazinho de erva-cidreira, que ficava tudo normal novamente. Mas se por acaso a dor se intensificasse, ou o mal fosse agravado, aí o “coroné” mandava chamar o capanga e logo dizia: “Vai na cidade e busca o dotôr”. O capanga ia, e logo voltava trazendo o tal doutor. Ele examinava o paciente e das duas uma, ou ele aplicava algum remédio que trouxera da “capitá”, ou mandava chamar o padre pra que o moribundo pudesse se confessar antes de comer capim pela raiz. E por muito tempo foi assim, um “dotôr” resolvia tudo. “Chama o dotôr”

Há alguns dias, passando por uma das ruas que compõe a arquitetura dessa maravilhosa cidade que é Uberlândia, me deparei com uma placa, que triunfante, brilhava, junto à fachada de um consultório, e que me chamara a atenção. Na placa estava escrito: Endodologista. Confesso que fiquei por alguns segundos, estático, pensando sobre aquela palavra que fugia totalmente a minha ignorante enciclopédia. A única frase que me surgiu naquele momento foi: “Chama o dotôr”. A partir desse dia, comecei a notar o quão especializado e ramificado está a nossa atual medicina. Essas descobertas, que para muitos pode até parecer banal, mas que para mim foi surpreendente, criou em mim uma duvida, digamos filosófica, muito semelhante a aquela dos nossos antepassados: “Quem veio primeiro, o ovo ou a galinha?”. Então arrisco-me a perguntar: O que veio primeiro, essa multiplicidade de doenças ou a medicina especializada? E rapidamente me pego a pensar naquele mesmo coroné, hoje com aproximadamente 80 anos, entrando no consultório e sentando-se. O doutor:

-Pois não meu senhor, pode me dizer o que o senhor tem?

-Ah meu filho, se eu soubesse, não estaria aqui.

-Sim, eu sei. Mas o senhor poderia me dizer onde o senhor sente dor?

-Ah meu filho, no corpo todo. Tenho 80 anos, dói o corpo todo.

-Vou tentar ser mais claro. O senhor pode me dizer onde a dor é maior?

-É no pé.

-O senhor pode ser mais específico.

-Posso ser mais o que?

-Qual dos dois pés que dói mais?

-Ah... O esquerdo.

-Na parte superior ou na inferior?

-Oi?

-Por cima ou por baixo?

-É no dedo.

-Qual dos dedos?

-O menorzim de todos.

-Olha o senhor vai me desculpar, mas a minha especialidade é o dedão, na sua parte inferior, intra....

E o “coroné” cabisbaixo, pensando: “Chama o dotôr”.

onde está a liberdade de ex-pressão

assim disse ele quando se dirigia ao banheiro