O rosto marcado, não pela idade, mas pelo tempo, dor e luta, refletia-se no vidro do ônibus da empresa Zefir ao dia quinze de novembro do ano um mil novecentos e setenta e três. Seu olhar era firme e decidido, resultado de quem vivera um tempo suficiente para ter a exata noção do que deveria ser feito naquele momento, e das consequências que isso acarretaria à sua vida. O medo da morte, insegurança quanto ao presente e futuro, isso não mais corroía sua mente, uma mente que agora era livre e despreendida desse mundo. Seu nome, Sônia Maria Lopes de Moraes. Antes de sair de casa, Sônia suspirou fundo, no seu próprio fundo, olhando cuidadosamente ao redor. Beijou delicadamente sua violeta que assim como ela não se encontrava em suas melhores condições, segurou com a mão direita um suvenir que ganhara de seu pai anos antes de tudo começar, pensou em chorar, exitou, os tempos eram outros, não havia o menor significado tal ato. Olhou para relógio na parede, passavam das oito e meia, então pensou; é chegado o momento. Caminhou calmamente em direção a porta da sala, mas antes de sair abriu a gaveta da estante e tomou posse de um pequeno crucifixo. Deu uma última olhada na casa, algo lhe dizia que seria a última, fechou a porta e foi.
Há exatos um mil novecentos e quarenta anos antes deste acima citado, um homem, filho de Elias, Jesus, preparava-se para ser crucificado, entrar para história e mudar os rumos da humanidade, isso segundo relatos de um de seus apóstulos, Marcos, em seu evangélho: “Os soldados conduziram-no ao interior do pátio, isto é, ao pretório, onde convocaram toda a corte. Vestiram Jesus de púrpura, teceram uma coroa de espinhos e colocaram na sua cabeça. E começaram a saúdá-lo ‘salve rei dos judeus !’. Davam-lhe na cabeça com uma vara cuspiam nele e punham-no de joelhos como para homenageá-lo. Depois de terem escarnecido dele, tiraram-lhe a púrpura, deram-lhe de novo as vestes e o conduziram para fora para crucificá-lo...” “...conduziram Jesus a um lugar chamado Golgota, que quer dizer lugar do crânio. Deram-lhe de beber vinho misturado com mirra, mas ele não aceitou. Depois de o terem crucificado, repartiram suas vestes, tirando a sorte sobre elas, para ver o que tocaria a cada um. Era a terceira hora quando o crucificaram. A inscrição que motivava a sua condenação dizia “O rei dos Judeus”. Crucificaram com ele dois bandidos, um a sua direita e outro a sua esquerda, cumpriu-se assim a escritura que diz: ele foi contado entre os malfeitores.” “Jesus deu um grande brado e expirou. O véu do templo rasgou-se então de alto a baixo em duas partes. O centurião que estava a frente de Jesus ao ver que ele tinha expirado assim disse: ‘Este homem era realmente o filho de Deus’.”
Sônia estudou no colégio de Aplicação da antiga Faculdade Nacional de Filosofia e, posteriormente, na Faculdade de Economia e Administração da UFRJ, mas não chegou a se formar. Ela foi presa, pela primeira vez, no dia primeiro de maio do ano de um mil novecentos e sessenta e nove, exilada logo em seguida por três anos na França. Ela era filha de Cléa Lopes de Moraes e João Luiz Moraes, este, Tenente-Coronel da Reserva do Exército Brasileiro e professor de matemática. É dele o trecho a seguir, parte de uma carta que ironicamente intitulo de “evangélho segundo João Luiz Moraes”: “Sônia Maria Lopes de Moraes, minha filha, teve seu nome mudado após o seu casamento com Stuart Edgar Angel Jones, para Sônia Maria de Moraes Angel Jones. Ambos foram torturados e assassinados por agentes da repressão política, ele em 1971 e ela em 1973. Minha filha foi morta nas dependências do Exército Brasileiro, enquanto seu marido Stuart Edgar Angel Jones foi morto nas dependências da Aeronáutica do Brasil. Tenho conhecimento de que, nas dependências do DOI-CODI do I Exército, minha filha foi torturada durante 48 horas, culminando estas torturas com a introdução de um cassetete da Polícia do Exército em seus órgãos genitais, que provocou hemorragia interna. Após estas torturas, minha filha foi conduzida para as dependências do DOI-CODI do II Exército, local em que novas torturas lhe foram aplicadas, inclusive com arrancamento de seus seios. Seu corpo ficou mutilado de tal forma, a ponto de um general
Em seu livro “Ensaio sobre a cegueira”, Saramago descreve uma sociedade que começa a conviver com a realidade de não mais enxergar. No decorrer do romance, sem distinção de sexo ou raça, valores, crédulos e bens, começam a perder a visão. Em meio a tal situação de catarse, sentimentos interiores, vão sendo vomitados, e passamos nós leitores a enxergar o que de pior e melhor existe na humanidade. O que para muitos poderia soar como uma simples ficção ou coisa do gênero, não passa de uma metáfora de nossa sociedade, de nossa realidade. Estamos cegos sim, uma cegueira cultural, moral e porque não, espiritual. Não gostaria de me arriscar em assuntos de cunho religiosos, o próprio Jesus não tem culpa com o que dele fizeram, mas bem sei que se torna impossível desatar e sendo assim, não tocar na ferida idolátrica de uma parcela do mundo ao me arriscar em tal comparação, mas o que diferencia nossa personagem Sônia Maria Lopes de Moraes, filha de João Luiz Moraes, de Jesus, filho de Elias? Pois lhe digo, ela talvez tenha sofrido muito mais durante as quarenta e oito horas de tortura do que ele nos seus trinta e três anos de vida. Principalmente por que não era dela o papel de sofrer a dor de uma nação, ela não nasceu para tal, não fora escolhida para tal, e sim se pré-dispos sem cobrar nada de ninguém, não pediu hora nenhuma que chorassem por ela, fez em nome de um ideal. Sônia era de carne e osso, como eu e você, mas possuia algo mais, algo semelhante ao que moveu Fatiam Al-Najar, uma senhora de sessenta e sete anos, mãe de quatro filhos e quarenta e um netos, que no ano de dois mil e seis se atirou para morte em meio a uma guerra unívoca sobre o que resta de um território fadado ao aniquilamento e que em algum momento da história será lembrado como Iraque. Estamos cegos sim, jogamos as dores do mundo (chamado de pecado) sobre as costas de um único ser, e não vemos que a cada dia Sônias e Fátimas estão lutando e dando suas vidas, em meu e em seu nome, vivendo e morrendo por um mundo melhor, Sônia em setenta e três, Fátima em dois mil e seis, coincidência numérica ou não, trinta e três anos depois. Estamos cegos, uma weberiana cegueira que talvez não tenha cura, por quem ou o que você estaria disposto a morrer? Aos mais covardes, conforto, não me refiro apenas a morte física.
Sônia era Militante da AÇÃO LIBERTADORA NACIONAL (ALN), Fátima filha de Hamas. Fátima teve seu corpo dissolvido por granadas, Sônia, os restos de seu corpo foram apenas sepultados em onze de agosto do ano de um mil novecentos e noventa e um, após quase vinte anos de sua morte.
Tenho eu, em janeiro de dois mil e sete, vinte e sete anos, a mesma idade com que Sônia nos deu a vida, mas que se ainda estivesse viva, teria completado no ano de um mil novecentos e setenta e nove, ano de meu nascimento, trinta e três anos. E não me venha com essa de “outra coincidência numérica”, contento-me em acreditar que tais ocorrências casuais, tais números, sirvam apenas para lembrar-me que mais que do “irmão” de Jesuses, sou um pouco filho de Sônias e neto de Fátimas.
Ah... Sônia, essa não ressucitou passados três dias.
Os trechos foram retirados dos livros; Bíblia Sagrada e Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos a Partir de 1964 – grupo Tortura Nunca Mais.
Carlos Tche – cineasta e pseudo-escritor.
4 comments:
muito doido hein velhinho!!!Parabéns!!!
Mais do que doido, é uma obra fantástica Tche, um nível de escrita e potencial que espero chegar um dia. Mas um questionamento eu deixo, pois eu concordo que vivemos uma era, ou melhor essa era sempre existiu, uma era de barbárie, brutalidade e ignorância, então o mais importante não é saber que isso existe, mas saber como resolver esse problema.
Alguma idéia, meu amigo, Carlos?
Grande Abraço
Realmente é com urgência que precisamos refletir essa degradação e caos em que caminha a humanidade. E então pergunto, o que estou fazendo? ou o que estou disposta a fazer? Acredito que existe a solução, mas ela não vem de nós e não pode ser jsutificada pelo "pecado" simplesmente.
De tempos em tempos escolhemos e ficamos indignados...
Tudo de bom pra vc!
Oi Tche,esse texto é daqueles que os comentários tornam-se insignificantes perante a grandeza e profundidade.
Os sentimentos que causa?Angústia e vontade de mudança.
Parabéns!!!!!!
Abraços em ti,meu anjo protetor.Caruliny
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