Wednesday, January 17, 2007

“Chama o dotôr”

Não muito diferente dos imortais boêmios que compuseram e ainda compõe a nossa história, e também não muito menos boêmio do que eles considero-me um completo apaixonado pelos botequins. O próprio nome “botequim” carrega consigo uma sonoridade particular. Para os que não o conhecem e até para alguns que não tiveram coragem suficiente de se arriscar a uma paradinha rápida, mesmo que para um ou dois chopinhos, três ou quatro palavrinha, vou logo lhes avisando, continuem firmes e fortes em seu propósito, pois como diz um amigo: “Esse será meu fim, passar a vida nos braços do botequim”. É realmente impossível desfrutar de sua doce e singela atmosfera por apenas uma “vezinha” só. As mulheres dos maridos que o digam. No botequim somos livres. É lá, definitivamente, o lugar mais neutro que existe. Porta adentro, o engenheiro se transforma em um filósofo respeitado, o juiz, extraordinário músico, e com um modesto “Ipi, Ipi”, é bem capaz de você se sentir uma pessoa carismática. Assim é o botequim.

Lembro-me que em um desses constantes momentos de inter-relação sócio-cultural, porque o botequim também é completamente imparcial e totalmente integrado, um amigo, Paxeco, que por unanimidade é o maior contador de piada que já conheci, ele me contou uma piadinha que gostaria de repassá-la, não por seu valor humorístico em si, e sim, pelo valor introdutório que a mesma carrega e que será de grande importância para essa “cônica”.

Contou ele que um dia dois amigos se encontraram em um botequim, e um deles começou a queixar-se de dores na região esquerda do que em latim é denominado tetis e em grego órkhis, os testículos. O companheiro todo preocupado com a situação não muito cômoda de seu amigo respondeu-lhe:

-Você tem muita sorte. Não há de ver que tive esse mesmo problema há poucos dias e tenho até o cartão do doutor que me curou.

O amigo então sacou o cartão e o entregou, sem notar que o cartão que entregara fosse de seu advogado e não do tal doutor. O outro que a essa altura pouco se importava com nomes e particularidades, simplesmente pegou o cartão e o guardou na carteira. No dia seguinte, ele não tardou em correr ao tal médico que na verdade era advogado. Chegou ao local, um pouco desconfiado, mas a dor ainda era insuportável, entrou na sala do tal “médico”, que nem de longe possuía características de um consultório, preferiu esperar sentado. De repente ele ouviu a porta se abrindo e pela sala entrar um senhor de barba serrada e um terno rica de giz, que de cara lhe interrogou, querendo saber do que se tratava. Ele, confuso, calmamente apontou para as regiões baixas e disse:

-E é bem a da esquerda.

O advogado deu uma risadinha marota e respondeu:

-Não meu amigo, o senhor deve estar enganado, o meu ramo é o do direito.

O cara todo sem graça levantou, caminhou em direção à porta e antes de fechar a mesma e sair, se virou e de forma concisa exclamou:

-Vai ser especialista assim, lá longe.

Meus avós me contam que antigamente, se referindo a 40, 50 anos atrás, quando as cidades eram afastadas uma das outras e mais afastadas ainda eram as fazendas e as pessoas quase não eram instruídas, se por acaso alguém passasse mal, sentisse alguma vertigem, contivesse uma gripe ou qualquer coisa do gênero, bastava colher alguns galhos terapêuticos no fundo quintal ou fazer algum chá de raiz amarga, que logo a dor ou o mal-estar se esvaia. Era um chazinho de erva-cidreira, que ficava tudo normal novamente. Mas se por acaso a dor se intensificasse, ou o mal fosse agravado, aí o “coroné” mandava chamar o capanga e logo dizia: “Vai na cidade e busca o dotôr”. O capanga ia, e logo voltava trazendo o tal doutor. Ele examinava o paciente e das duas uma, ou ele aplicava algum remédio que trouxera da “capitá”, ou mandava chamar o padre pra que o moribundo pudesse se confessar antes de comer capim pela raiz. E por muito tempo foi assim, um “dotôr” resolvia tudo. “Chama o dotôr”

Há alguns dias, passando por uma das ruas que compõe a arquitetura dessa maravilhosa cidade que é Uberlândia, me deparei com uma placa, que triunfante, brilhava, junto à fachada de um consultório, e que me chamara a atenção. Na placa estava escrito: Endodologista. Confesso que fiquei por alguns segundos, estático, pensando sobre aquela palavra que fugia totalmente a minha ignorante enciclopédia. A única frase que me surgiu naquele momento foi: “Chama o dotôr”. A partir desse dia, comecei a notar o quão especializado e ramificado está a nossa atual medicina. Essas descobertas, que para muitos pode até parecer banal, mas que para mim foi surpreendente, criou em mim uma duvida, digamos filosófica, muito semelhante a aquela dos nossos antepassados: “Quem veio primeiro, o ovo ou a galinha?”. Então arrisco-me a perguntar: O que veio primeiro, essa multiplicidade de doenças ou a medicina especializada? E rapidamente me pego a pensar naquele mesmo coroné, hoje com aproximadamente 80 anos, entrando no consultório e sentando-se. O doutor:

-Pois não meu senhor, pode me dizer o que o senhor tem?

-Ah meu filho, se eu soubesse, não estaria aqui.

-Sim, eu sei. Mas o senhor poderia me dizer onde o senhor sente dor?

-Ah meu filho, no corpo todo. Tenho 80 anos, dói o corpo todo.

-Vou tentar ser mais claro. O senhor pode me dizer onde a dor é maior?

-É no pé.

-O senhor pode ser mais específico.

-Posso ser mais o que?

-Qual dos dois pés que dói mais?

-Ah... O esquerdo.

-Na parte superior ou na inferior?

-Oi?

-Por cima ou por baixo?

-É no dedo.

-Qual dos dedos?

-O menorzim de todos.

-Olha o senhor vai me desculpar, mas a minha especialidade é o dedão, na sua parte inferior, intra....

E o “coroné” cabisbaixo, pensando: “Chama o dotôr”.

2 comments:

Anonymous said...

gostei.

Yllie said...

Com o passar do tempo e da evolução do conhecimento humano, este último ampliou-se em tal medida que especializações se tornaram necessárias. Assim como existem os engenheiros, médicos, advogados e dentro dessas áreas existem os engenheiros civis, elétricos, cardiologistas, ornitolaringologistas, advogados para divórcio e defesa.

O avanço do conhecimento talvez não tenha sido tão bom assim...