Monday, March 24, 2008

A vendinha

-Um copo d’água, por favor.
Levantei a cabeça antes mesmo de ele se aproximar. Da porta pude notar que se tratava de mais um andarilho. Tenho acompanhado a evolução deles nesses últimos anos, desde que assumi a vendinha que foi uma das dúnicas heranças de minha falecida mãe. Antes eles apareciam semanalmente, agora, de três a quatro vezes por dia. Começo a desconfiar que não se trate apenas de um problema econômico, prefiro não estender o assunto. Mas esse não era um dos comuns, não, esse não. Em sua mão trazia um livro e um disco de vinil, trajava um blazer já desbotado, e carregava consigo alem de um olhar firme, um sotaque castelhano fortíssimo. Se aproximou.
-Um copo d’água, por favor.
Ele tampou seu livro. Sua testa não suava, a mão um pouco suja e seca e em um dos dedos, o maior, um anel que ao entrar em contato com a luz do sol que vazava pela fresta do teto, causa-proveniente de uma das pedras que o filho mais novo do visinho havia jogado, refletiu e clareou a parede estampando letras que formaram a palavra “liberty”. Desviei o olhar para o vinil, conhecia, mas não me lembrava de onde. Tudo fazia pouco sentido, me sentia em algum filme tarantinesco.
-Um copo d’água, por favor.
Entreguei-lhe o copo duplo, completei com água do refrigerador, garrafa essa que havia reservado para mim, era segunda-feira e estava com uma ressaca de matar. Ele tomou posse do copo me olhou e sentou em uma das mesas de madeira de jatobá que havia no canto da venda. Nunca soube realmente o gosto da água, mas tenho certeza, ele sabia. Em pequenos goles foi calmamente bebendo, e enquanto o líquido lhe preenchia o corpo, lágrimas em seu olho esquerdo brotavam. Tentei exitar, decidi então por lhe fazer companhia.
-Está tudo bem?
-Claro.
-O que lhe trás aqui?
-Curiosidade.
-Pois pergunte.
Olhei novamente o disco que agora apresentava a contra capa, a primeira faixa estava muito bem circulada; “One of these days”.
-Não sei, acho que isso não se faz necessário.
-Estou no mundo há mais de quarenta anos, destes, mais de trinta vivo a caminhar, posso dizer que conheço praticamente o mundo todo, da miséria de Burundi ao luxo de Sundsvall, acredite, o melhor que há em cada parada é a possibilidade de uma nova partida, as variadas variações das pessoas e a diferente cultura, e digo mais, de tudo que conheci nessa vida nunca encontrei algo tão fabuloso quanto isso, [Apontou para tudo que estava sobre a mesa] nunca li algo tão bom quanto água, nunca bebi algo tão profundo quanto esse disco, e jamais encontrei outro gosto de uma literatura como essa.
Virei a capa do livro para mim. Por alguns segundos fiquei embriagada com o que vi. O livro de areia que Borges um dia falou, segurei-o por todos os seus lados, era realmente fantástico, folheei, tudo era como Jorge havia descrito, as páginas, o infinito, tudo.
-Onde conseguiu?
-Todos nós o temos... mas poucos se lembram onde guardaram.
Falamos muito sobre muitas coisas àquela manhã, continuamos e continuaremos muito a falar e a outros lugares visitar. Eu e ele. A vendinha... Essa ainda deve estar à espera de mais outros tantos andarilhos. Não acredito que voltaremos a passar por lá.
Texto para cultblog - 24/ 03/ 2008

Thursday, March 20, 2008

Em direção ao sol

- Um pé... Isso. Agora o outro... O outro e... Foi assim doutor, me lembro como se fosse hoje, me lembro de tudo, foi assim que tudo começou. Ainda posso ver o olhar umedecido e emocionado de minha mãe, seus braços abertos e nós dois separados por pequenos dois passos. Ela então me segurou e ergueu-me, como a um troféu. Eu tinha apenas onze meses doutor, mas lembro de tudo, de tudo. É engraçado isso, não é doutor? Sim, é muito. Lembro de tudo, lembro até a frase que ela sussurrou em meu ouvido assim que me deitei protegido em seu ombro, essa eu nunca esquecerei, “Você agora é livre, livre para ganhar o mundo”. Foi um choque doutor, o primeiro choque da minha vida, ninguém com apenas onze meses e três dias seria capaz de se sentir tranqüilo com tamanha oferta. A liberdade é muito perigosa doutor. Desde então passei a correr, corria para todos os lados, atrás dos bichos e na frente deles também, dentro e fora de casa. Nós morávamos em uma fazenda, perto de uma floresta e ao lado de uma bela montanha. O sol se punha bem de frente a minha janela e eu disparava todos os dias em sua direção, queria encostar minhas mãos, me aquecer em seu corpo, sentir sua textura. Meu avô era escritor, e sempre lia histórias para mim. Adorava sentar ao seu lado e cultivava minha atenção toda a ele. Um dia meu avô me chamou e me guiou por um dos corredores da casa, foi então que veio meu segundo choque doutor, eu já tinha meus dez anos. Abriu uma das portas da casa, eu nunca tinha ido aquele cômodo, era uma outra biblioteca, muito maior que a outra e com livros muito mais empoeirados. Eu fiquei estático e ele feliz, “Prepare a mala e avise sua mãe, será longa a viagem”. Estava tudo ali doutor, filosofias, artes, tudo. Eu passaria a sentir a liberdade correndo em meus pés e descansando em minha mente. O mundo dentro de uma sala e apenas o sol como desafio. Li muito doutor, li tudo que estava ao meu alcance, e cada vez corria mais. Até que chegou o dia doutor, eu sempre soube que ele chegaria. Peguei o último dos livros que me interessava naquela biblioteca – Don Quixote – olhei uma última vez para meu avô e corri com toda a velocidade em direção ao sol, fui para não mais voltar. Eu tinha que seguir meu destino doutor, o destino que minha mãe me dera, ganhar o mundo. A minha casa seria o mundo, os animais, as plantas, a água, a vida. Escutei algumas noites seguidas a voz de meu pai a me procurar por entre a mata, mas eu não queria voltar, eu não iria voltar. Tinha tudo que precisava; meus pés, um livro e o mundo pela frente. E durante esses nove anos, quatro meses e sete dias a flora passou a ser minha única hospedeira e a fauna, minha família. A liberdade, mais do que perigosa é necessária e de direito doutor. E é isso tudo o que tenho a dizer.
- Você sabe por que está aqui meu rapaz?
- Porque o doutor pediu para que eu viesse.
Ele pos a mão no seu ombro e continuou.
- Você sabe que está sendo indiciado?
- O doutor me disse.
- Você sabe por quê?
- Não.
- Você está sendo indiciado pela morte de mais de vinte e três homens, que nesses últimos nove anos, quatro meses e sete dias morreram em suas mãos. Você tem noção do que isso representa?
- Homens? Não doutor, não eram homens não, eram caçadores.
- Eram homens, como eu e você.
- Não se compare a eles doutor. Eles eram caçadores. E foram apenas submetidos à lei da selva, nada mais do que isso, nada mais.
- Mas você sabe que as ações e os moldes aqui são diferentes.
- São? O que o senhor faria se alguém que você ama estivesse sobre a mira de uma espingarda ou na iminência de um machado? Em doutor, o que o senhor faria?
Texto para cultblog - 18/03/08

Thursday, March 13, 2008

Rosinha

Essas coisas sempre acontecem comigo. De repente o telefone toca e pronto, tudo muda. Então atendo, do outro lado uma voz chorosa balbucia algo que não entendo bem. Curioso, sem compreender muito o que se passa, aguardo ainda alguma comunicação mesmo que codificada. Em meios aos soluços e snifs, uma frase vem à tona - A culpa é sua. O que? Isso mesmo, a culpa é toda sua – e o choro volta a agredir meus ouvidos. A culpa é minha? Como assim? [Penso]. Quem está falando?

A verdade é que não estava vendo sentido em quase nada do que ouvia, primeiro por não ter a menor noção de quem estava na linha, segundo, não há quem consiga se concentrar e atender o telefone em meio a uma sessão de desencapetamento na 36° igreja dos centuriões alados do senhor, a segunda maior da cidade, com mais de três mil seguidores e um equipamento de som de ultima geração que faria inveja a qualquer WoodStock e principalmente com um pastor que rodeado de seus discípulos a meio metro de ti grita, esbraveja e lhe empurra para todas as direções.

Mas isso foi tudo coisa da Rosinha, sim, a linda Rosinha. Não sou e nem me predisponho a ser fiel a ponto de passar por tamanha ridícula situação, mas por Rosinha sim. Trabalho como encanador, acho que não havia falado sobre, sou o que hoje se intitula “free-lance”, trabalho por conta, e, portanto quase sempre me enfio em confusão, não sei se uma tem a ver com a outra, mas o fato é que poucos imaginam os apertos que já passei em minha vida por conta de minhas visitas, as mulheres são muito perigosas, acredite. Bom, conheci Rosinha na casa de seus patrões e meus clientes, eu avisei que os canos estavam velhos, que fazer barba na pia de 1976 daria problema, eu avisei. Nunca contei a ninguém da casa que uma vez encontrei um vibrador preso no cano de descarga da filha mais nova, Rafaela, dezoito aninhos, confesso que passei a observá-la com outros olhos a partir desse dia. Mas Rosinha, que não tinha nada a ver com isso, não, ela não, seus encanamentos eram perfeitos, que curvas, tudo no seu devido lugar, vinte e três anos, faxineira, moradora da periferia, sonhadora, linda, um fogo à altura de minha caixa d’água e apenas um defeito, muito devota, tanto que para cada sessão de encapetamento nossa, deveríamos nos repurificar com uma breve mas cansativa visita a casa do senhor, e por isso me encontrava ali naquele maldito lugar na hora que o telefone vibrou.

Pedi licença ao projeto de Edir Macedo, retirei sua mão de meu ombro e me afastei um pouco do barulho – Como você disse? A culpa é sua – a voz agora já se encontrava mais firme – Maria, é você? E ainda troca meu nome, seu cretino. E então desligou.
Maria é a sobrinha de um amigo meu, mas essa é outra história. Na certa era apenas engano, fato comum nos dias de hoje. De longe, fiquei apenas a observar Rosinha, permanecia linda em meio aos encapetados que buscam a purificação defronte ao altar,e me pergunto, será que o espírito maligno que sai de nosso corpo caminha através das mãos para o corpo do pastor? Creio que sim, ele não parava de olhar em direção aos volumosos seios de Rosinha.

Texto publicado na Coluna "Labirinto Retilinio" - Cultblog

Monday, March 03, 2008

"cantico negro" - maria bethania



Com certeza, essa é uma das poesias que eu gostaria de ter feito.