Levantei a cabeça antes mesmo de ele se aproximar. Da porta pude notar que se tratava de mais um andarilho. Tenho acompanhado a evolução deles nesses últimos anos, desde que assumi a vendinha que foi uma das dúnicas heranças de minha falecida mãe. Antes eles apareciam semanalmente, agora, de três a quatro vezes por dia. Começo a desconfiar que não se trate apenas de um problema econômico, prefiro não estender o assunto. Mas esse não era um dos comuns, não, esse não. Em sua mão trazia um livro e um disco de vinil, trajava um blazer já desbotado, e carregava consigo alem de um olhar firme, um sotaque castelhano fortíssimo. Se aproximou.
-Um copo d’água, por favor.
Ele tampou seu livro. Sua testa não suava, a mão um pouco suja e seca e em um dos dedos, o maior, um anel que ao entrar em contato com a luz do sol que vazava pela fresta do teto, causa-proveniente de uma das pedras que o filho mais novo do visinho havia jogado, refletiu e clareou a parede estampando letras que formaram a palavra “liberty”. Desviei o olhar para o vinil, conhecia, mas não me lembrava de onde. Tudo fazia pouco sentido, me sentia em algum filme tarantinesco.
-Um copo d’água, por favor.
Entreguei-lhe o copo duplo, completei com água do refrigerador, garrafa essa que havia reservado para mim, era segunda-feira e estava com uma ressaca de matar. Ele tomou posse do copo me olhou e sentou em uma das mesas de madeira de jatobá que havia no canto da venda. Nunca soube realmente o gosto da água, mas tenho certeza, ele sabia. Em pequenos goles foi calmamente bebendo, e enquanto o líquido lhe preenchia o corpo, lágrimas em seu olho esquerdo brotavam. Tentei exitar, decidi então por lhe fazer companhia.
-Está tudo bem?
-Claro.
-O que lhe trás aqui?
-Curiosidade.
-Pois pergunte.
Olhei novamente o disco que agora apresentava a contra capa, a primeira faixa estava muito bem circulada; “One of these days”.
-Não sei, acho que isso não se faz necessário.
-Estou no mundo há mais de quarenta anos, destes, mais de trinta vivo a caminhar, posso dizer que conheço praticamente o mundo todo, da miséria de Burundi ao luxo de Sundsvall, acredite, o melhor que há em cada parada é a possibilidade de uma nova partida, as variadas variações das pessoas e a diferente cultura, e digo mais, de tudo que conheci nessa vida nunca encontrei algo tão fabuloso quanto isso, [Apontou para tudo que estava sobre a mesa] nunca li algo tão bom quanto água, nunca bebi algo tão profundo quanto esse disco, e jamais encontrei outro gosto de uma literatura como essa.
Virei a capa do livro para mim. Por alguns segundos fiquei embriagada com o que vi. O livro de areia que Borges um dia falou, segurei-o por todos os seus lados, era realmente fantástico, folheei, tudo era como Jorge havia descrito, as páginas, o infinito, tudo.
-Onde conseguiu?
-Todos nós o temos... mas poucos se lembram onde guardaram.
Falamos muito sobre muitas coisas àquela manhã, continuamos e continuaremos muito a falar e a outros lugares visitar. Eu e ele. A vendinha... Essa ainda deve estar à espera de mais outros tantos andarilhos. Não acredito que voltaremos a passar por lá.