Thursday, March 20, 2008

Em direção ao sol

- Um pé... Isso. Agora o outro... O outro e... Foi assim doutor, me lembro como se fosse hoje, me lembro de tudo, foi assim que tudo começou. Ainda posso ver o olhar umedecido e emocionado de minha mãe, seus braços abertos e nós dois separados por pequenos dois passos. Ela então me segurou e ergueu-me, como a um troféu. Eu tinha apenas onze meses doutor, mas lembro de tudo, de tudo. É engraçado isso, não é doutor? Sim, é muito. Lembro de tudo, lembro até a frase que ela sussurrou em meu ouvido assim que me deitei protegido em seu ombro, essa eu nunca esquecerei, “Você agora é livre, livre para ganhar o mundo”. Foi um choque doutor, o primeiro choque da minha vida, ninguém com apenas onze meses e três dias seria capaz de se sentir tranqüilo com tamanha oferta. A liberdade é muito perigosa doutor. Desde então passei a correr, corria para todos os lados, atrás dos bichos e na frente deles também, dentro e fora de casa. Nós morávamos em uma fazenda, perto de uma floresta e ao lado de uma bela montanha. O sol se punha bem de frente a minha janela e eu disparava todos os dias em sua direção, queria encostar minhas mãos, me aquecer em seu corpo, sentir sua textura. Meu avô era escritor, e sempre lia histórias para mim. Adorava sentar ao seu lado e cultivava minha atenção toda a ele. Um dia meu avô me chamou e me guiou por um dos corredores da casa, foi então que veio meu segundo choque doutor, eu já tinha meus dez anos. Abriu uma das portas da casa, eu nunca tinha ido aquele cômodo, era uma outra biblioteca, muito maior que a outra e com livros muito mais empoeirados. Eu fiquei estático e ele feliz, “Prepare a mala e avise sua mãe, será longa a viagem”. Estava tudo ali doutor, filosofias, artes, tudo. Eu passaria a sentir a liberdade correndo em meus pés e descansando em minha mente. O mundo dentro de uma sala e apenas o sol como desafio. Li muito doutor, li tudo que estava ao meu alcance, e cada vez corria mais. Até que chegou o dia doutor, eu sempre soube que ele chegaria. Peguei o último dos livros que me interessava naquela biblioteca – Don Quixote – olhei uma última vez para meu avô e corri com toda a velocidade em direção ao sol, fui para não mais voltar. Eu tinha que seguir meu destino doutor, o destino que minha mãe me dera, ganhar o mundo. A minha casa seria o mundo, os animais, as plantas, a água, a vida. Escutei algumas noites seguidas a voz de meu pai a me procurar por entre a mata, mas eu não queria voltar, eu não iria voltar. Tinha tudo que precisava; meus pés, um livro e o mundo pela frente. E durante esses nove anos, quatro meses e sete dias a flora passou a ser minha única hospedeira e a fauna, minha família. A liberdade, mais do que perigosa é necessária e de direito doutor. E é isso tudo o que tenho a dizer.
- Você sabe por que está aqui meu rapaz?
- Porque o doutor pediu para que eu viesse.
Ele pos a mão no seu ombro e continuou.
- Você sabe que está sendo indiciado?
- O doutor me disse.
- Você sabe por quê?
- Não.
- Você está sendo indiciado pela morte de mais de vinte e três homens, que nesses últimos nove anos, quatro meses e sete dias morreram em suas mãos. Você tem noção do que isso representa?
- Homens? Não doutor, não eram homens não, eram caçadores.
- Eram homens, como eu e você.
- Não se compare a eles doutor. Eles eram caçadores. E foram apenas submetidos à lei da selva, nada mais do que isso, nada mais.
- Mas você sabe que as ações e os moldes aqui são diferentes.
- São? O que o senhor faria se alguém que você ama estivesse sobre a mira de uma espingarda ou na iminência de um machado? Em doutor, o que o senhor faria?
Texto para cultblog - 18/03/08

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