Saturday, August 16, 2008

vou passar cerol na mão

Em meio a um azul sul-americano de cegar, o corpo de cor vermelha serpenteava solitariamente e seu tórax mantinha-se cada vez mais erguido conforme a força do vento lhe impulsionava pra cima. Foi ganhando altura e, imponente, causava inveja nas concorrentes que aos poucos começavam a se aproximar. Em uma ponta o losango, na outra a mão que descrevia um balé e lhe dava mais autoridade no vôo. As crianças, duas, olhavam admiradas o zig-zag do papagaio. O pai, de gravata e calça de linho, o herói. Uma tinha apenas dois aninhos, enrolava os pés em meio a frauda e por isso caminhava com dificuldade; a outra tinha cinco anos, mas mesmo assim estampava no rosto um sorriso que fez meus olhos se encherem.Era algo em torno das doze horas e o sol a pino fazia com que as primeiras gotas brotassem na bochecha. O pai, executivo, dava sua esmola de atenção, e ele sabia disso. Há quanto não brincava com as “escrotinha” (era assim que as apelidava), mal notara o quanto elas cresceram. Mas hoje não, ele por algum mísero momento voltava a ser pequeno, corria e se alimentava daquele instante. Pulou muito de felicidade ao ver a pipa ganhar os ares, e depois abraçou e içou-as, como o campeão que ergue a taça do triunfo.
Em meio a todo aquele brotar de euforia, seu telefone tocou, entregou o brinquedo para a mais velha, não havia perigo, bastava manter-se quieta, e rapidamente vi sua face modelar-se como de costume. Franziu a testa, gesticulou, esbravejou e nem notou que a filha puxava-lhe a calça em meio ao pranto que subitamente jorrou.Um, dois, cinco puxões e finalmente a atenção foi retribuída. Ele disse algo como “ligo daqui a pouco” e desligou. Olhou para a mão da filha e suspirou. O barbante não mais tencionara como antes, pelo contrário, ficou grande parte deitado sobre a grama. Voltou-se para o céu e viu seu pássaro, sua nave, sua alegria, planar em direção à rua oposta onde cinco ou seis moleques, já aos socos e pontapés, disputavam o melhor espaço para agarrá-la. Tentou consolar a filha, a mais velha, por que a menor tinha certeza que tudo fazia parte do roteiro. Melhor ir embora, pensou.
Os três se perderam em meio à rua, de volta pra casa. A filha mais nova, com a mesma despreocupação de antes; a mais velha ainda soluçava ao que talvez fosse sua primeira derrota, e ele apenas maquinava, certo de que de alguma forma poderia usar aquela simples e comum experiência em futuras palestras sobre como ganhar mais mercado e derrubar o seu adversário; algo em torno do uso do cerol e da noção exata do momento de “desbicar”.
Eis o poder das pipas
texto da coluna "labirinto retilinio" cult blog

10 comments:

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ler todo o blog, muito bom

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