Wednesday, April 02, 2008

O baile

A porta abriu e ele entrou ofegante, com alguma dificuldade tirou o casaco, encostou sua bengala atrás da porta e olhou ao redor, sentindo uma pequena vertigem. Quatro andares de escada são realmente quatro andares de escada nos dias de hoje. Tenho que mudar daqui, pensou mais uma vez. Em sua mão uma carta, que trazia na frente suas iniciais e nenhum remetente, na outra uma sacolinha com perecíveis. Sentou na poltrona, respirou fundo novamente, ligou a tv e abriu cuidadosamente a carta. Dentro um convite, só pode ser um engano, pensou, há anos ninguém lhe enviara nada, nem mesmo um catálogo da Ermes. “Convidamos a vossa senhoria para o baile de máscaras do próximo dia 12. Sua presença é indispensável”.
Baile de máscaras... Quanto tempo não ouvia falar. Veio-lhe a lembrança do glamour de seus melhores anos, tudo se combinava, e ele não se sentia tão só como agora, mas tudo passa, os amores e a força, tudo um dia passa, menos a lembrança. Com certeza seria mais um daqueles equívocos, como o jantar dançante de 1986. Deixou o cartão cair sobre a mesa de centro e cochilou hipnotizado pelas imagens.
O salão era imenso e todo em mármore. As pessoas, em sua esmagadora maioria mais velhas como ele, estavam devidamente mascaradas e caminhavam em todas as direções, lentamente é claro. Garçons com bebidas e canapés se multiplicavam no espaço. Aparentemente não conhecia ninguém, mas desde sua entrada fora tratado com todo requinte, como um convidado especial. Caminhou, lentamente, comeu pouco, bebeu e puxou papo com uma ou duas pessoas, mulheres de preferência, queria sentir o prazer das suas flertadas de outrora, continuava encantador em sua retórica que ora passeava pela filosofia antiga, ora pela literatura argentina e chilena, mas que não surtiriam muito efeito ali, principalmente porque todas estavam na verdade acompanhando um ou outro convidado. Este foi um dos fatos que lhe chamara a atenção, sem contar que ninguém sabia explicar porque e quem havia feito o convite para tal festa. E assim foi se desenrolando a noite.
Quando o relógio já marcava próximo a meia noite, alguém que se apresentou como o representante do anfitrião solicitou a todos que se reunissem no saguão principal que dava de frente para a escada que levava ao andar superior. Aos poucos todos foram se espremendo e aglomerando no tal local, a essa altura, ninguém poderia prever mais nada, mas continuavam curiosos com o desfecho. Do topo da escada à meia luz surgiu um vestido longo e branco com um véu que cobria o rosto, mas não escondia suas rugas e sua idade, é das nossas, pensou. Houve um início de burbúrio no salão que logo foi calado pela voz da “noiva” que cuidadosamente descia as escadas. Sua voz soou conhecida e ele deu um passo a frente para checar com maior cuidado. Percebeu que não apenas ele, mas todos os homens ao seu redor sentiam o mesmo. Sophia, sim, era ela, confirmou pela pinta no braço esquerdo e o nariz que fez volume por baixo do véu, há mais de quarenta anos que ouço falar dela. Fora uma de suas presas na adolescência, mas nunca havia relatado o acontecido para ninguém, também pudera, como contar para os amigos que havia se deitado com a moça que na época recebia o carinhoso apelido de Bina [abreviatura de carabina]. De certa forma todos também a reconheceram. Loucura ou não, mas ela havia convidado grande parte dos homens que um dia passaram pela sua vida, sem exceção. Até um rapaz que aparentava seus vinte e poucos anos, e que a essa altura, de vergonha se encolhia atrás de uma das pilastras.
A história que aparentemente não teria como piorar mais, piorou. Houve uma revolta geral, por parte das esposas que se encontravam no local, quando Sophia anunciou o real motivo do convite. No auge dos seus setenta anos, ela que afirmou com toda convicção que ainda sentia tesão, gostaria de mais uma vez sentir o prazer de ser amada por cada um dos presentes que em algum momento da vida a amou. Foi a gota d’água, Sophia que nos tempos áureos fora totalmente destrambelhada, provocava alvoroço por onde passava, mais uma vez o fazia. Algumas mulheres puxaram o braço do companheiro para retirá-lo da festa, outras começaram a passar mal com o canapé que certamente não estava tão mais saboroso assim, as que a reconheciam do passado, jogavam insultos e injúrias. E o mais engraçado, ninguém tinha coragem de descolar a mascara do rosto, inclusive ele. Fantástico, foi seu último comentário
A porta abriu e ele entrou ofegante, com alguma dificuldade tirou o casaco, encostou sua bengala atrás da porta e olhou ao redor, sentindo novamente aquela pequena vertigem. Tenho que me mudar, pensou mais uma vez. Sentou exausto, sentindo a segurança da poltrona. Olhou o relógio que marcava três da manha. Jogou sua máscara sobre a mesa de centro. Ainda perplexo com a festa, sorriu admirado, lembrando de algumas cenas. O tumulto foi generalizado, a polícia foi chamada e por conta disso algumas máscaras foram ao chão. Sorriu outra vez balançando a cabeça, até você Jonas, pensou, até você...


texto para cultblog 31/ 03/ 08

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