Thursday, April 24, 2008

O grito

Seu nome, Sísifo. Poucos compreendiam o motivo, outros associavam sua alcunha ao fato dele ter nascido durante a festa de nossa senhora, no ducentésimo nono degrau da escadaria, debaixo de um sol escaldante em meio à multidão que rodeava sua mãe. Nesse dia, a missa teve de ser atrasada em duas horas, o menino não queria se desprender do ventre de forma alguma. A mãe, uma das romeiras, gritava [mas os gritos que lhe feriam os ouvidos é que tornava mais difícil o trabalho] e fazia força, uma força que só com muita fé para não desmaiar ali de repente. O padre rezava, e entre preces e dor, o projeto foi cuspido sobre o pano que uma das “parteiras” cedera. E assim veio ao mundo o nosso Sísifo, meio contra a sua vontade, envolto pelo cordão e pela multidão que feliz ovacionou-o quando o padre com ambas as mãos o ergueu para o alto.
Era a terceira vez que a mãe visitava o santuário e ainda viriam mais algumas pela frente. Promessas são viciosas, não dá para viver sem elas. Sempre surge um motivo ou outro para nos impulsionar, nos tirar da doxa inércia.
Há um ditado que diz que quem nasce de noite prefere o dia, da cama prefere o chão, e assim vai. Com nosso amigo não seria diferente, duas coisas ele cresceu abominando, ruídos e escadas, sempre usava rampas ou elevadores e para evitar ruídos ele desenvolveu uma técnica de isolamento total, isolamento tal que a partir dos sete anos não falava ou ouvia ninguém, como um vácuo que protege o ouvido e uma dobra que atrofia a língua. Sísifo seria o primeiro surdo-mudo por opinião. Esse fora um dos motivos que levaram sua mãe às escadarias outras tantas vezes. Coisa do caramulhão.
Foi dessa forma que pelo mundo ele foi passando, como um vácuo, inerte e indiferente, um objeto dentro de seu próprio orifício. Alguns pensadores acreditam que ele foi e é um dos seres mais felizes da terra, um objeto que pensa. Estudou artes, nunca apresentou um projeto por vontade própria e quando apresentava, os temas envolviam sempre silêncio ou não. Um dia sentiram sua falta, ele não mais estava lá.
Quem me contou sobre Sísifo foi um tio meu que disse ter estudado com ele na infância, mas que anos depois não mais o viu. Procurei saber mais sobre ele e sua vida, certamente ele deve ter muito para contar. Sabe-se que hoje em dia, já a beira de seus setenta anos, é possível encontrá-lo diariamente às duas horas e nove minutos da tarde na Galeria Nacional de Arte de Oslo. Sempre vestido com uma camisa de manga preta, um cachecol cor pastel, pálido e com a cabeça grande e raspada, Sísifo fica horas ouvindo música clássica com seu mp3 player, de frente para o quadro de Edvard Munch. Louco ou não, ele afirma ser seu auto-retrato.
texto publicado no site do cultblog - dia 15 de abril

1 comment:

Anonymous said...

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