Wednesday, July 02, 2008

alvejado

O dedo já sentia o frio metal, bastava acionar o gatilho e pronto, fim. Sua medalhinha da sorte balançava marcando o ritmo, tudo ao som de Limelight. Ele adorava o silêncio durante as execuções, mas essa era especial, o cello certamente o acalmaria. A mira, o vento, tudo estava perfeito. A vítima sentada tomando seu café matinal, domingo, a cidade parada, seria um infarto, era o que pensariam em um primeiro momento, tempo suficiente para que ele saísse, como de costume, pela porta da frente sem levantar qualquer suspeita. Olhou novamente, sua vista turva, os olhos lentamente se encheriam de lágrima e ele exitou. Sentiu um calafrio subindo a coluna, abaixou a cabeça e suspirou. Sentiu o transbordar, mas não o toque de sua alma. Ele precisava ser frio, precisava ser forte, o Lança [seu pseudônimo] não poderia falhar, mas já estava há dois dias sem dormir, pensando na sua vítima. Dois dias sem paz, acompanhado apenas por uma garrafa de Black e os sons dos carros que cortavam a noite. Por várias vezes pediu e até implorou para seu chefe deixá-lo fora dessa, mas ele era o melhor, não poderia haver erros. Em alguns segundos ele voltou no tempo, vida pobre, a mãe solteira, trabalhava dia e noite, ele aprendeu a se virar desde cedo. Veio à mente sua primeira missão, como ele tremia naquele dia, não é fácil matar alguém pela primeira vez, tremia tanto que depois do segundo disparo, no lugar do peito, acertou a orelha, isso claro, logo após beijar sua medalha da sorte que herdou de um traficante a quem dera suporte durante uma investida da polícia na periferia onde morava. Ele tinha critérios, nunca matou alguém que não merecesse. Sua mente confundia-se entre diversas informações. Cresceu sem nenhuma referência paterna, conheceu o pai depois da adolescência, mas nunca o procurou, sua revolta era muito grande, como pode um milionário “comer” a empregada e nunca ajuda-la em nada. Prazer e dor. Preferia continuar na miséria absoluta a mendigar migalhas ao velho. Sim ele o odiava do fundo de sua alma, mas daí a ter que mata-lo, há uma fenda enorme e incompreensível. Mas seu alvo estava ali, sentado e tomando café, ele nunca tomou café em sua companhia, sim, seu pai, quem lhe trouxe a esse inferno, quem nunca lhe aceitou como filho, quem nunca se quer lhe abraçou, agora na mira de sua lança, que vida, pensou, beijando a medalhinha e enxugando os olhos.
Para muitos aquele foi mais um simples e comum domingo, para ele, o encontro, início e fim de uma longa história.

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