Wednesday, July 02, 2008

iônico

Não era muito tarde, mas o céu já apresentava borrões de penumbra por toda a parte. Naquele ano, o inverno nada tênue, deixou mais densa a paisagem que cercava o lugar. Ela já se preparava para deitar, olhou pela janela e percebeu que o infinito estava agitado, ondas dançavam de forma estranha, algo que nunca havia visto antes, de certa forma aquilo chamara a sua atenção e por um instante ela se fixou naquele tenro movimento. De repente uma forte luz, que vinha do mesmo horizonte, ofuscou totalmente sua visão e por um momento, como se o tempo tivesse estagnado, tudo ficou calmo, paralisado. Ela então, recobrando a lucidez, olhou novamente para fora e notou que aquele céu que antes apresentava uma coloração cinza, agora se desmaterializava em uma rubra e viscosa mancha. Sentiu-se estranha, estranheza essa proporcionada por uma combinação de energias que fugia o seu conhecimento e controle, a cabeça rodou e como se o ar pudesse lhe prender em todas as direções, se viu paralisada. Mal teve tempo de procurar entender o que acontecera, escutou a batida que vinha da porta principal. Com alguma dificuldade ela se envolveu em seu manto cor branca e caminhou em direção a porta. Sua surpresa não foi menor que o arrepio que lhe cobriu dos pés a cabeça, por alguns segundos permaneceu estática e antes que arriscar qualquer fala, foi obrigada a deslocar lateralmente o corpo permitindo a passagem da visita que rapidamente ganhou a sala.

- Mas você é...
- Sim, sou eu.
- Mas...
- Precisamos conversar.

Ainda um pouco confusa, fechou a porta, mas antes verificou se ninguém as havia observado.

- Pode ficar sossegada, ninguém sabe ou mesmo viu que eu vim até aqui lhe procurar. Não notou que o tempo parou? Preciso apenas ser rápida, para que não interfira demais no bom andamento do que hoje ainda se arriscam a chamar de vida.
- Mas como?... É impossível... Você não...
- Eu sei, eu sei... Conheço todas as regras, não me venha com seus dogmas e paradigmas. Sei que a lei natural das coisas não permite que isso ocorra. Sei muito bem que onde eu estou você não deve estar. Sei também que justamente quando me enfraqueço você se fortalece e blábláblá... Acontece que precisava falar-lhe com extrema urgência, precisava lhe confessar e lhe cobrar algumas coisas.

Sentando, continuou:

- A verdade é que estou muito preocupada e não poderia deixar de vir, mesmo sabendo das penitências que tal ato podem me ser futuramente consagradas.

Gosto muito de sair pelas ruas a perambular. Sigo a observar as pessoas que passam por mim e que na maioria das vezes se aproximam e em meio à insanidade cotidiana nem notam a minha presença. Parece loucura, e talvez seja, mas em pouco tempo consigo sincronizar – pelo menos em meus pensamentos – o ritmo de seus passos e o bailar de seus corpos com a canção que ressoa em meus ouvidos, e a partir desse momento me perco nessa dança e sinto como se pudesse controlar a sinfonia do mundo, passando a ser eu o maestro, o regente da vida. Então, embebido de um êxtase, uma embriagante felicidade interior e sem que ninguém perceba, transformo a vida de cada um que me rodeia e transita pelo mesmo caminho que eu. E nesse mundo que crio e sou deus a felicidade se estampa em cada vidraça e em cada face. De súbito, o pedinte flutua em seus sonhos, a cigana gira no ar lendo a sorte dos passarinhos, o office-boy de par com o guarda desfila em meio à praça lotada de espectadores que dão a mínima para o trancar das portas bancárias, as crianças de cima da escultura de um falso herói dão saltos ornamentais no chafariz, e enquanto isso, a peculiar película de meus olhos registra todo esse arrebatamento. E ante a essa construção, esses mesmos contempladores olhos se enchem d’água, pois sabem que o espasmo desta fração terá seu fim no instante que o zinco e o cobre fizerem sua última troca iônica e toda a energia pulsante existente nas pilhas, então, mais uma vez se esvair.
O que destrói a ausência de forma é a fôrma, o que deprime a loucura é a sanidade. No final de tudo percebo que a alegria do mundo não estava no mundo e sim em mim em meus olhos. Os sons confusos da urbanidade voltam a povoar a mente e tudo torna a ser o que era, triste. Essa tristeza recai sobre as pessoas despertando-as as avessas, um banho de ducha na casa do Rei Leão [falarei dele futuramente]. Concluo que há sim, infelizmente, a necessidade de alicerces psicológicos e espirituais para vencer os desafios diários. E então passo a compreender porque, àquela noite, a Tristeza contrariou a natureza do universo, atravessou a barreira do tempo-espaço e decidiu procurar pela Alegria; algo era preciso ser feito.

- Não sei mais o que fazer.
- Não chore Dona Tris. Quer um copo d’água?
- Água... Quero não ter que trabalhar tanto. Quero poder tirar férias, passear no Tibet. Quero sim, uma reunião com o Sr. Lúcifer e Deus. Não suporto mais essa vida. Ta tudo muito confuso. Estou velha, acabada. Quero aposentadoria. Olhe para ti, ainda parece na flor da idade. Depois da Grécia antiga você quase não tem nada para fazer...
- Nisso a senhora tem razão, ninguém mais sorri como naquele tempo.
- Viu do que me chamou? Senhora... É o fim. Meu Zeus, onde está o verdadeiro humor dessa terra. Onde anda os Anysios da vida. Cansei de piadinhas de político. Cansei de piadinhas com celebridades... Não muda, cansei.

A conversa durou umas duas horas. Nada como duas garrafas de vinho para abrir a mente e a alegria e a tristeza contrariarem as leis da física. A reunião com os todos poderosos seria agendada sem falta para o próximo final de semana, de preferência na casa de Deus, onde sempre tem uísque 12 séculos. Mas mesmo assim, algumas ações foram pensadas no intuito de amenizar o que a priori parecia insolucionável. Dentre elas, algumas que já estão sendo votadas no plenário celeste, cito abaixo:

_na política; a liberação universal da maconha, mesmo em mesquitas e catedrais, essa erva que proporciona um estado de desligamento total, ressalva a China e Índia, onde tal liberação poderia ter como reflexo um outro problema sério; a falta de alimento.
_na música; a traição deveria aceita como um ato normal e humano, o que proporcionaria uma maior aceitação social desembocando em um teto máximo de lançamento de três duplas sertanejas anuais, ao contrário das milhares que vem surgindo mensalmente.
_na geografia; a não preocupação com a camada de ozônio, uma vez que o aquecimento provoca o derretimento das calotas aumentando o nível do mar, o que provocaria a diminuição de território, resumindo, uma aproximação massiva das pessoas.
_no cinema; todo o dinheiro acumulado pelos blockbusters americanos durante toda sua história de existência deveria ser devolvido ao país de origem e revertido para o aquecimento do que deve ser considerado realmente cinema.
_no trânsito; é extremamente proibido transitar em pé dentro dos ônibus, que portanto deverão circular com menor periodicidade. Um serviço de bordo com cerveja gelada de dia e vinho tinto a noite será estudado.
_no lazer; ingresso serão cobrados referente a 10% do salário mínimo para que as pessoas possam adentrar os shoppings. Esses complexos são coisas de burguês, que se restrinja a eles então, a maioria dos mortais necessitam de parque, bosque e cultura, e não de deixar suas salivas nas vitrines frontais dos mini-magazines. Estuda-se também a obrigatoriedade de que tais estruturas só possam ser construídas dentro de condomínios horizontais, assim dificilmente nos misturaríamos com tais classes.
_na religião; todo aquele que quiser falar com deus, o fará, desde que devidamente assessorado por Estamira¹. E não através das vulgares corporações da fé que se reciclam periodicamente para se ajustar ao sistema.

Amém.

1- www.estamira.com.br
texto para cultblog

2 comments:

Nass Ju said...

tchê! belíssimo.
estou boquiaberta!

Nas.

Nass Ju said...

*me ocorreu duas coisas:

1 - sou a favor de apenas 3 duplas sertanejas por ano... afinal, "só estamos apaixonados qnd Bruno e Marrone faz sentido".

2 - que coisa engraçada é o poder do vinho...