Wednesday, July 02, 2008

céu de cinzas

Quem tem coragem já carrega a sorte. Ouviu isso do seu pai anos antes do mesmo morrer. Ouviu também que viver era um ato de puro egoísmo sem sentido, e que o mais interessante de se manter vivo era única e exclusivamente o fato de frequentemente sentir o prazer de tirar o sono daquele que lhe queria de todo morto. E mais, que pensar no futuro era uma idiotice sem tamanho, já que até mesmo o presente passa por nós em um piscar de olhos ou em um simples reflexo do espelho e que na verdade vivemos em um constante passado que se movimenta na busca de se tornar novamente presente.
Nessa época tinha apenas seis anos, idade não muito propícia para essas discussões e ensinamentos, mas algo dizia a seu pai que mesmo assim se faria necessário. Ele não estava de todo errado. Ano seguinte estouraria a segunda grande guerra e com ela o extermínio de milhares de pessoas.
- Estávamos em Budapeste, vi meu pai e minha mãe serem levados arrastados pelo corredor a fora e meu irmão sendo alvejado ali mesmo, caindo ao meu lado, junto ao soldado alemão que como um iceberg, imponente, ainda me jogou um sorriso que fez a minha respiração parar por quase dois minutos. O ariano não quis me levar com eles e nem ao menos desperdiçou uma balinha se quer em meu pequeno encéfalo, ao contrário disso, tenho plena certeza, pois pude ler em seus olhos, pensou ele que me deixando ali sozinho e desamparado, eu sofreria muito mais, seria muito mais humilhado e morreria amiúde vendo o terror passar pela retina. Tolo, pena dele não ter verdadeiramente conhecido meu pai, irá perder o sono. Três dias depois caminhava pela rua, já não estava mais em minha casa, para lhes ser sincero não sabia mais onde estava, a região era muito fria e as pessoas não entenderiam uma palavra sequer do que eu falava. Sentei junto a uma caixa, estava com o peito cheio, olhava as pessoas correndo e pensava apenas naquele momento e nada mais, só deus sabe o quanto meu pai foi importante para mim. Nesse instante, subitamente, pousou em meu rosto alguns fragmentos, dois, cor cinza como tudo ali, que chegavam de não sei onde, mas que flutuavam no céu como pluma em meio a outros tantos. Escutei alguém que passava pela rua gritar algo que pude decifrar como sendo “Eles estão nos cremando novamente”. Não sei por que, mas senti o toque de minha mãe e de meu pai quando esses dois fragmentos beijaram-me a testa e então pensei; esse lugar não mais terá meu presente ou meu futuro e um dia perderá o meu passado.
Assim nos contou Oliveira, judeu [apesar de ainda ter medo de ser considerado um], o filho, que saiu com vida daquela carnificina preso ao eixo de um caminhão. Hoje, com seus três quartos de século, Oliveira mora em uma casa abandonada em um bairro pobre de uma cidade do interior do Paraná, a casa rupestre era de uma senhora italiana, também resultado da guerra, mas da primeira, que faleceu sentada no banco da sala esquecida por seus filhos. Oliveira encontrou-a lá com um porta-retratos na mão, depois de descobrir um molho de chaves na calçada com o endereço no chaveiro. Enterrou-a no fundo da casa mesmo como se enterrasse tudo o que viveu. Na casa não há luz, apenas água, ele decidira pagar para ter o que beber e onde banhar. Todas as manhãs toma seu café e lê seu jornal na padaria do Alemão, tudo na faixa, é o mínimo que posso fazer diz o proprietário. O almoço fica por conta do que acha pela rua, e normalmente acha.
Oliveira despende seu tempo em duas coisas, quatro horas diárias de visitas a biblioteca municipal e outras cinco escrevendo sua biografia, dedicada ao pai, que pretende publicar com o dinheiro que achou embaixo do colchão da italiana. Junto ao dinheiro estava um bilhete que falava um pouco de quem ela fora e que terminava com o seguinte trecho “Deixo estes para aquele que um dia como eu foi um dos filhos sofridos da noite e sei que um dia virá o que necessita, pois este com certeza tarda mais não falha.” Semanalmente também vai à sala de cinema independente [onde entra de graça por ser amigo do dono, um dos filhos da antiga URSS], já assistiu mais de dez vezes “a infância de Ivan” de Tarkovski, seu preferido. E assim vai vivendo sem nunca pensar no futuro.
Conta ele também que chegou ao Brasil dois anos depois da chuva de cinzas escondido em um avião da FAB, ficou preso e antes de ser mandado de volta fugiu e se escondeu nas ruas protegido pelas vozes e gritos que nunca lhe abandonaram. Nunca o questionei sobre isso, quem tem coragem já carrega a sorte, assim diz e assim aprendi com ele.
texto para Cultblog

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