Monday, December 29, 2008

Onde andará Nicanor

O dia surgiu pela janela pouco aberta e ela ainda pode sentir na boca o gosto da noite anterior. Seu vestido úmido esparramado sobre a cadeira lhe dava a certeza de que não fora apenas enganada pela vontade. Agora muito mais fraca, a chuva, a abençoada e incessante chuva continuava a cair sobre o mundo do lado de fora limpando a memória e os vestígios de uma inesquecível aparição, um tango de Piazzolla nos versos de Caymi, um encontro com Nicanor de Chico Buarque. É claro que o álcool e a oportunidade impulsionam os seres a atos dos mais inesperados, mas continuo a acreditar que nada acontece por acaso. O acaso está associado a inúmeras combinações racionais, irracionais ou mesmo instintivas. Em resumo, os dois se necessitavam, mesmo que momentaneamente, mesmo que para não desperdiçar a chuva que inundava a noite.

Era dia de natal, e por mais cético e insensível que seja o individuo, duvido que não sinta a energia de uma paz hospedada bem na ponta do nariz. Mas ela não precisava de presentes ou cumprimento, se tudo o que vivera há poucas horas atrás, mesmo que meteórico e inesperado, fosse uma prévia do que estaria por vir nos dias seguintes, tudo já estava por si consumado e suficientemente preenchido. Sentia necessidade sim de cruzar novamente o olhar, de fixá-lo novamente, não em busca de certezas ou confirmações, mas pela simples necessidade que sentiu de súbito em saber que ele continuava ali.

Levantou-se e caminhou, sonolenta, até a cozinha. O encontro não demorou a acontecer, os olhos não mentem e o dele era sincero, garanto. Segredo não há quando mais de um sabe, mas seriam cúmplices e confidentes, não irmãos, mas quase primos de algo que não mais voltaria a acontecer, não daquela forma, não daquele jeito, talvez melhor, talvez pior, talvez...

carlos segundo
26/ 12/ 2008

Copacabana

Enfim, o dia. E a brisa que vem trazendo o aroma de sal não deixa a menor dúvida. Os dois pés invisíveis se escondem na areia que mesmo fina preenche todo o arredor. Ele se encurva e as pessoas apenas caminham, ele não sabe por que, mas elas caminham, talvez seja o ar; ele merece ser inspirado com maior ferocidade. Ele sentado, observa e admira o domingo que se inicia.
Sem fim o dia. Pelo menos assim deveria ser. As pessoas sempre felizes e o Maraca sempre lotado. Os turistas sempre estupefatos e os vendedores com o bolso inchado. Assim deveria ser aquela cena, um eterno caminhar. Deveria? Ele pergunta, sem obter resposta e ali continua seu monólogo, sentado.
É fim do dia. Quem dera se fôssemos Pacíficos e não Atlânticos, veríamos o sol se por, e a água salgada calmamente apagaria sua brasa, trazendo de volta apenas aquela bola branca de cinza sem vida. Não, mas aqui, na terra onde o Cristo abre seus braços, o astro se esconde atrás do morro, ou o morro que esconde o astro atrás de si? Pensaria mais sobre o assunto e não perguntaria. Fato é, o morro não mais consegue esconder os seus casebres que escalam sua espinha dorsal e passam a olhar de cima, plongeémente as pessoas que ainda caminham, o Maraca que não esvazia, os turistas ainda estupefatos e os bolsos não tão inchados, em fim, o dia das pessoas que ainda acreditam ou fingem não saber. Banho de mar é realmente bom pra descarregar.
Foi-se enfim o dia, mas ele não se despede, fica ali, sentado.Em sua frente a imensidão do mar, ao seu lado Drummond.
O poeta estático, ele pensante.
O poeta metálico, ele circulante.
O poeta eterno, ele... um dia, em fim.
carlos segundo
cultblog - 14/ 11/ 2008

Friday, September 05, 2008

Cana cai Ana

Algo em torno de dezesseis e quarenta e dois da tarde e o ônibus da empresa Motta cruza o oeste paulista. A poltrona, além da ausência do cinto de segurança, não deixa a perna esticar por completa, provocando uma irritação constante, o melhor então é se desprender e se fixar na paisagem. O sol nessa época do ano desce de forma suave e deixa a planície com um tom amarelado que enche os olhos de admiração e o motorista de cautela. O mp4 já sem carga suficiente te deixa na mão, e para evitar o tédio os pensamentos e as palavras vão sendo organizadas e quase sempre uma poesia ou mesmo uma letra, mesmo que tímida, de uma nova canção ganha espaço.
Fagulhas de lembranças sempre aparecem para confeitar o que se vai aos poucos se construindo. O trajeto se divide, a baldeação fora feita e algumas placas indicavam a aproximação de São José do Rio Preto. Destino, Uberlândia, ponto de partida Narandiba. Sim, Narandiba, esse pequeno cisco geográfico paulista com pouco mais de quatro mil habitantes que deixa até mesmo o programa Word confuso e sem sugestão ortográfica, fica a apenas trinta e seis quilômetros de Presidente Prudente.
A terra onde existem muitas laranjas [tradução tupi guarani] possui suas particularidades e paradoxos. Há nela, um misto de hospitalidade e mal entendidos constantes, oito restaurantes e uma sanduicheria que trás em seu cardápio além do clássico x-tudo a italianíssima pizza à moda da casa, e não se assustem, regrada a um bom azeite Galo. O acesso não é difícil, a estrada um pouco esburacada e sinuosa ganha uma sensação de labirinto, com os paredões dos canaviais que se estendem pelo trajeto e que não é um privilégio local, a terra roxa paulista ultimamente pode até ter assobiado pouco, mas com certeza tem chupado muita cana.
Esse micro-cosmos que puxa o R com certa facilidade, que trás a calma estampada no rosto e que tem praticamente 100% do esgoto tratado, vive um momento próprio, resultado da instalação de duas usinas de álcool nas suas dependências, Cocal e Biofuel Energy.
Não vou repetir aqui incessantemente a nota dó do piano de cauda atendo-me em discussões que se referem ao problema ecológico que está diretamente ligado à implantação das usinas, é evidente que acredito nas suas conseqüências futuras. Gostaria na verdade, dentro de meu imediatismo contemporâneo, compartilhar um problema muito mais real e palpável que aflige principalmente as donzelas narandibenses.
Associada a produção da cana, houve uma explosão demográfica de homens, italifico o gênero, na cidade que vieram dos quatro cantos do país atrás de trabalho e dignidade. Não os culpo por isso, mas o fato é que não há mulher suficiente para tanto homem assim, o que vem causando preocupações e ataques desesperados constantes. Hormônios em alta, o caos sexual está posto, e a cana que tanto tira o sono de biólogos e economistas, passa a preocupar mais ainda, pais, padres, parteiras e claro, as moças da vida. E olha, nem mesmo chegamos na entressafra.
carlos segundo

Saturday, August 16, 2008

vou passar cerol na mão

Em meio a um azul sul-americano de cegar, o corpo de cor vermelha serpenteava solitariamente e seu tórax mantinha-se cada vez mais erguido conforme a força do vento lhe impulsionava pra cima. Foi ganhando altura e, imponente, causava inveja nas concorrentes que aos poucos começavam a se aproximar. Em uma ponta o losango, na outra a mão que descrevia um balé e lhe dava mais autoridade no vôo. As crianças, duas, olhavam admiradas o zig-zag do papagaio. O pai, de gravata e calça de linho, o herói. Uma tinha apenas dois aninhos, enrolava os pés em meio a frauda e por isso caminhava com dificuldade; a outra tinha cinco anos, mas mesmo assim estampava no rosto um sorriso que fez meus olhos se encherem.Era algo em torno das doze horas e o sol a pino fazia com que as primeiras gotas brotassem na bochecha. O pai, executivo, dava sua esmola de atenção, e ele sabia disso. Há quanto não brincava com as “escrotinha” (era assim que as apelidava), mal notara o quanto elas cresceram. Mas hoje não, ele por algum mísero momento voltava a ser pequeno, corria e se alimentava daquele instante. Pulou muito de felicidade ao ver a pipa ganhar os ares, e depois abraçou e içou-as, como o campeão que ergue a taça do triunfo.
Em meio a todo aquele brotar de euforia, seu telefone tocou, entregou o brinquedo para a mais velha, não havia perigo, bastava manter-se quieta, e rapidamente vi sua face modelar-se como de costume. Franziu a testa, gesticulou, esbravejou e nem notou que a filha puxava-lhe a calça em meio ao pranto que subitamente jorrou.Um, dois, cinco puxões e finalmente a atenção foi retribuída. Ele disse algo como “ligo daqui a pouco” e desligou. Olhou para a mão da filha e suspirou. O barbante não mais tencionara como antes, pelo contrário, ficou grande parte deitado sobre a grama. Voltou-se para o céu e viu seu pássaro, sua nave, sua alegria, planar em direção à rua oposta onde cinco ou seis moleques, já aos socos e pontapés, disputavam o melhor espaço para agarrá-la. Tentou consolar a filha, a mais velha, por que a menor tinha certeza que tudo fazia parte do roteiro. Melhor ir embora, pensou.
Os três se perderam em meio à rua, de volta pra casa. A filha mais nova, com a mesma despreocupação de antes; a mais velha ainda soluçava ao que talvez fosse sua primeira derrota, e ele apenas maquinava, certo de que de alguma forma poderia usar aquela simples e comum experiência em futuras palestras sobre como ganhar mais mercado e derrubar o seu adversário; algo em torno do uso do cerol e da noção exata do momento de “desbicar”.
Eis o poder das pipas
texto da coluna "labirinto retilinio" cult blog

Monday, August 04, 2008

ultimo capítulo

Suas passadas eram firmes e largas. Seu corpo se desvencilhava dos obstáculos com uma agilidade digna de um dançarino contemporâneo. O centro nesse dia não se continha de tantas pessoas, pacotes, sacolas, comida e calor. Crianças puxando seus bichos comiam algodão doce, outras choravam em busca do presente ideal. Mas nada que desviasse a sua atenção, precisava ser ágil, e o balé se mantinha. Trazia em suas mãos uma caixa, era um ladrão, não havia dúvida, pelo menos é o que se percebia nos olhares das pessoas que se assustavam com sua tamanha destreza. Ninguém gritou.
Cruzou duas avenidas e jogou o corpo para uma viela que daria em uma via secundária. Saltou uma mureta e com um golpe alcançou o outro lado da calçada, parou.
- Ei!!!
Falou para um entregador de compras que parado aguardava o pagamento do carreto. O mesmo tentou exitar. Tarde demais. Amarrou a caixa na cargueira e partiu rumo à periferia.
Suas pedaladas não ficavam tímidas às passadas, ao contrário, eram tão ou mais resistentes e então ele alçou vôo. Pela retina as imagens se perdiam e como que hipnotizado seguia. Tinha uma promessa a cumprir, talvez por isso que quando se aproximava de casa, em meio ao alvoroçar de seus cabelos, o sorriso aos poucos se construía em seu rosto.
A bicicleta ficou na calçada mesmo, toda quebrada e cheia de lama. Entrou correndo, empurrou o portãozinho e em seguida a porta principal. Colocou a caixa no chão e como um animal enfurecido a mão destruía o papelão, bem como o isopor. Em sua mente uma música, olho azul de Abujamra, enchia seu peito de energia. Retirou o aparelho, 14 polegadas, pequeno, mas suficiente. Entrou quarto adentro, colocou-a sobre a caixa de feira que serviu como rack. A antena foi improvisada com palha de aço. A energia, um gato, fora feito com a ajuda de um vizinho que trabalhava na Cemig há mais de 32 anos. Deitou no projeto de cama e com uma das mãos tentou acionar o controle, não funcionou, controles não vêm com pilhas, pensou. Levantou novamente e ligou manualmente mesmo. Voltou novamente para cama.
A imagem, mesmo um pouco chiada e em desfoque, foi suficiente para despertar a lágrima dos olhos, não dos seus, mas de sua mãe que ao seu lado, inválida e prestes a abandoná-lo, aguardava ansiosamente o presente que o filho prometera. Pouco tempo de vida lhe restava e era tudo o que sempre quis, poder assistir tv deitada, como as madames que as novelas a vida toda lhe venderam.
Assim ficaram durante alguns minutos, não muitos, abraçados, ela para a tv, ele pra ela. Aos poucos os olhos fracos foram fechando e a respiração se perdendo. Ao mesmo tempo o chiado da tv se confundia com o som das sirenes que se aproximavam. Os dois sorriam, se abraçavam felizes e cúmplices ficariam até o ultimo segundo.

texto postado no cult blog 24/ 07/ 08

Wednesday, July 02, 2008

iônico

Não era muito tarde, mas o céu já apresentava borrões de penumbra por toda a parte. Naquele ano, o inverno nada tênue, deixou mais densa a paisagem que cercava o lugar. Ela já se preparava para deitar, olhou pela janela e percebeu que o infinito estava agitado, ondas dançavam de forma estranha, algo que nunca havia visto antes, de certa forma aquilo chamara a sua atenção e por um instante ela se fixou naquele tenro movimento. De repente uma forte luz, que vinha do mesmo horizonte, ofuscou totalmente sua visão e por um momento, como se o tempo tivesse estagnado, tudo ficou calmo, paralisado. Ela então, recobrando a lucidez, olhou novamente para fora e notou que aquele céu que antes apresentava uma coloração cinza, agora se desmaterializava em uma rubra e viscosa mancha. Sentiu-se estranha, estranheza essa proporcionada por uma combinação de energias que fugia o seu conhecimento e controle, a cabeça rodou e como se o ar pudesse lhe prender em todas as direções, se viu paralisada. Mal teve tempo de procurar entender o que acontecera, escutou a batida que vinha da porta principal. Com alguma dificuldade ela se envolveu em seu manto cor branca e caminhou em direção a porta. Sua surpresa não foi menor que o arrepio que lhe cobriu dos pés a cabeça, por alguns segundos permaneceu estática e antes que arriscar qualquer fala, foi obrigada a deslocar lateralmente o corpo permitindo a passagem da visita que rapidamente ganhou a sala.

- Mas você é...
- Sim, sou eu.
- Mas...
- Precisamos conversar.

Ainda um pouco confusa, fechou a porta, mas antes verificou se ninguém as havia observado.

- Pode ficar sossegada, ninguém sabe ou mesmo viu que eu vim até aqui lhe procurar. Não notou que o tempo parou? Preciso apenas ser rápida, para que não interfira demais no bom andamento do que hoje ainda se arriscam a chamar de vida.
- Mas como?... É impossível... Você não...
- Eu sei, eu sei... Conheço todas as regras, não me venha com seus dogmas e paradigmas. Sei que a lei natural das coisas não permite que isso ocorra. Sei muito bem que onde eu estou você não deve estar. Sei também que justamente quando me enfraqueço você se fortalece e blábláblá... Acontece que precisava falar-lhe com extrema urgência, precisava lhe confessar e lhe cobrar algumas coisas.

Sentando, continuou:

- A verdade é que estou muito preocupada e não poderia deixar de vir, mesmo sabendo das penitências que tal ato podem me ser futuramente consagradas.

Gosto muito de sair pelas ruas a perambular. Sigo a observar as pessoas que passam por mim e que na maioria das vezes se aproximam e em meio à insanidade cotidiana nem notam a minha presença. Parece loucura, e talvez seja, mas em pouco tempo consigo sincronizar – pelo menos em meus pensamentos – o ritmo de seus passos e o bailar de seus corpos com a canção que ressoa em meus ouvidos, e a partir desse momento me perco nessa dança e sinto como se pudesse controlar a sinfonia do mundo, passando a ser eu o maestro, o regente da vida. Então, embebido de um êxtase, uma embriagante felicidade interior e sem que ninguém perceba, transformo a vida de cada um que me rodeia e transita pelo mesmo caminho que eu. E nesse mundo que crio e sou deus a felicidade se estampa em cada vidraça e em cada face. De súbito, o pedinte flutua em seus sonhos, a cigana gira no ar lendo a sorte dos passarinhos, o office-boy de par com o guarda desfila em meio à praça lotada de espectadores que dão a mínima para o trancar das portas bancárias, as crianças de cima da escultura de um falso herói dão saltos ornamentais no chafariz, e enquanto isso, a peculiar película de meus olhos registra todo esse arrebatamento. E ante a essa construção, esses mesmos contempladores olhos se enchem d’água, pois sabem que o espasmo desta fração terá seu fim no instante que o zinco e o cobre fizerem sua última troca iônica e toda a energia pulsante existente nas pilhas, então, mais uma vez se esvair.
O que destrói a ausência de forma é a fôrma, o que deprime a loucura é a sanidade. No final de tudo percebo que a alegria do mundo não estava no mundo e sim em mim em meus olhos. Os sons confusos da urbanidade voltam a povoar a mente e tudo torna a ser o que era, triste. Essa tristeza recai sobre as pessoas despertando-as as avessas, um banho de ducha na casa do Rei Leão [falarei dele futuramente]. Concluo que há sim, infelizmente, a necessidade de alicerces psicológicos e espirituais para vencer os desafios diários. E então passo a compreender porque, àquela noite, a Tristeza contrariou a natureza do universo, atravessou a barreira do tempo-espaço e decidiu procurar pela Alegria; algo era preciso ser feito.

- Não sei mais o que fazer.
- Não chore Dona Tris. Quer um copo d’água?
- Água... Quero não ter que trabalhar tanto. Quero poder tirar férias, passear no Tibet. Quero sim, uma reunião com o Sr. Lúcifer e Deus. Não suporto mais essa vida. Ta tudo muito confuso. Estou velha, acabada. Quero aposentadoria. Olhe para ti, ainda parece na flor da idade. Depois da Grécia antiga você quase não tem nada para fazer...
- Nisso a senhora tem razão, ninguém mais sorri como naquele tempo.
- Viu do que me chamou? Senhora... É o fim. Meu Zeus, onde está o verdadeiro humor dessa terra. Onde anda os Anysios da vida. Cansei de piadinhas de político. Cansei de piadinhas com celebridades... Não muda, cansei.

A conversa durou umas duas horas. Nada como duas garrafas de vinho para abrir a mente e a alegria e a tristeza contrariarem as leis da física. A reunião com os todos poderosos seria agendada sem falta para o próximo final de semana, de preferência na casa de Deus, onde sempre tem uísque 12 séculos. Mas mesmo assim, algumas ações foram pensadas no intuito de amenizar o que a priori parecia insolucionável. Dentre elas, algumas que já estão sendo votadas no plenário celeste, cito abaixo:

_na política; a liberação universal da maconha, mesmo em mesquitas e catedrais, essa erva que proporciona um estado de desligamento total, ressalva a China e Índia, onde tal liberação poderia ter como reflexo um outro problema sério; a falta de alimento.
_na música; a traição deveria aceita como um ato normal e humano, o que proporcionaria uma maior aceitação social desembocando em um teto máximo de lançamento de três duplas sertanejas anuais, ao contrário das milhares que vem surgindo mensalmente.
_na geografia; a não preocupação com a camada de ozônio, uma vez que o aquecimento provoca o derretimento das calotas aumentando o nível do mar, o que provocaria a diminuição de território, resumindo, uma aproximação massiva das pessoas.
_no cinema; todo o dinheiro acumulado pelos blockbusters americanos durante toda sua história de existência deveria ser devolvido ao país de origem e revertido para o aquecimento do que deve ser considerado realmente cinema.
_no trânsito; é extremamente proibido transitar em pé dentro dos ônibus, que portanto deverão circular com menor periodicidade. Um serviço de bordo com cerveja gelada de dia e vinho tinto a noite será estudado.
_no lazer; ingresso serão cobrados referente a 10% do salário mínimo para que as pessoas possam adentrar os shoppings. Esses complexos são coisas de burguês, que se restrinja a eles então, a maioria dos mortais necessitam de parque, bosque e cultura, e não de deixar suas salivas nas vitrines frontais dos mini-magazines. Estuda-se também a obrigatoriedade de que tais estruturas só possam ser construídas dentro de condomínios horizontais, assim dificilmente nos misturaríamos com tais classes.
_na religião; todo aquele que quiser falar com deus, o fará, desde que devidamente assessorado por Estamira¹. E não através das vulgares corporações da fé que se reciclam periodicamente para se ajustar ao sistema.

Amém.

1- www.estamira.com.br
texto para cultblog

céu de cinzas

Quem tem coragem já carrega a sorte. Ouviu isso do seu pai anos antes do mesmo morrer. Ouviu também que viver era um ato de puro egoísmo sem sentido, e que o mais interessante de se manter vivo era única e exclusivamente o fato de frequentemente sentir o prazer de tirar o sono daquele que lhe queria de todo morto. E mais, que pensar no futuro era uma idiotice sem tamanho, já que até mesmo o presente passa por nós em um piscar de olhos ou em um simples reflexo do espelho e que na verdade vivemos em um constante passado que se movimenta na busca de se tornar novamente presente.
Nessa época tinha apenas seis anos, idade não muito propícia para essas discussões e ensinamentos, mas algo dizia a seu pai que mesmo assim se faria necessário. Ele não estava de todo errado. Ano seguinte estouraria a segunda grande guerra e com ela o extermínio de milhares de pessoas.
- Estávamos em Budapeste, vi meu pai e minha mãe serem levados arrastados pelo corredor a fora e meu irmão sendo alvejado ali mesmo, caindo ao meu lado, junto ao soldado alemão que como um iceberg, imponente, ainda me jogou um sorriso que fez a minha respiração parar por quase dois minutos. O ariano não quis me levar com eles e nem ao menos desperdiçou uma balinha se quer em meu pequeno encéfalo, ao contrário disso, tenho plena certeza, pois pude ler em seus olhos, pensou ele que me deixando ali sozinho e desamparado, eu sofreria muito mais, seria muito mais humilhado e morreria amiúde vendo o terror passar pela retina. Tolo, pena dele não ter verdadeiramente conhecido meu pai, irá perder o sono. Três dias depois caminhava pela rua, já não estava mais em minha casa, para lhes ser sincero não sabia mais onde estava, a região era muito fria e as pessoas não entenderiam uma palavra sequer do que eu falava. Sentei junto a uma caixa, estava com o peito cheio, olhava as pessoas correndo e pensava apenas naquele momento e nada mais, só deus sabe o quanto meu pai foi importante para mim. Nesse instante, subitamente, pousou em meu rosto alguns fragmentos, dois, cor cinza como tudo ali, que chegavam de não sei onde, mas que flutuavam no céu como pluma em meio a outros tantos. Escutei alguém que passava pela rua gritar algo que pude decifrar como sendo “Eles estão nos cremando novamente”. Não sei por que, mas senti o toque de minha mãe e de meu pai quando esses dois fragmentos beijaram-me a testa e então pensei; esse lugar não mais terá meu presente ou meu futuro e um dia perderá o meu passado.
Assim nos contou Oliveira, judeu [apesar de ainda ter medo de ser considerado um], o filho, que saiu com vida daquela carnificina preso ao eixo de um caminhão. Hoje, com seus três quartos de século, Oliveira mora em uma casa abandonada em um bairro pobre de uma cidade do interior do Paraná, a casa rupestre era de uma senhora italiana, também resultado da guerra, mas da primeira, que faleceu sentada no banco da sala esquecida por seus filhos. Oliveira encontrou-a lá com um porta-retratos na mão, depois de descobrir um molho de chaves na calçada com o endereço no chaveiro. Enterrou-a no fundo da casa mesmo como se enterrasse tudo o que viveu. Na casa não há luz, apenas água, ele decidira pagar para ter o que beber e onde banhar. Todas as manhãs toma seu café e lê seu jornal na padaria do Alemão, tudo na faixa, é o mínimo que posso fazer diz o proprietário. O almoço fica por conta do que acha pela rua, e normalmente acha.
Oliveira despende seu tempo em duas coisas, quatro horas diárias de visitas a biblioteca municipal e outras cinco escrevendo sua biografia, dedicada ao pai, que pretende publicar com o dinheiro que achou embaixo do colchão da italiana. Junto ao dinheiro estava um bilhete que falava um pouco de quem ela fora e que terminava com o seguinte trecho “Deixo estes para aquele que um dia como eu foi um dos filhos sofridos da noite e sei que um dia virá o que necessita, pois este com certeza tarda mais não falha.” Semanalmente também vai à sala de cinema independente [onde entra de graça por ser amigo do dono, um dos filhos da antiga URSS], já assistiu mais de dez vezes “a infância de Ivan” de Tarkovski, seu preferido. E assim vai vivendo sem nunca pensar no futuro.
Conta ele também que chegou ao Brasil dois anos depois da chuva de cinzas escondido em um avião da FAB, ficou preso e antes de ser mandado de volta fugiu e se escondeu nas ruas protegido pelas vozes e gritos que nunca lhe abandonaram. Nunca o questionei sobre isso, quem tem coragem já carrega a sorte, assim diz e assim aprendi com ele.
texto para Cultblog

alvejado

O dedo já sentia o frio metal, bastava acionar o gatilho e pronto, fim. Sua medalhinha da sorte balançava marcando o ritmo, tudo ao som de Limelight. Ele adorava o silêncio durante as execuções, mas essa era especial, o cello certamente o acalmaria. A mira, o vento, tudo estava perfeito. A vítima sentada tomando seu café matinal, domingo, a cidade parada, seria um infarto, era o que pensariam em um primeiro momento, tempo suficiente para que ele saísse, como de costume, pela porta da frente sem levantar qualquer suspeita. Olhou novamente, sua vista turva, os olhos lentamente se encheriam de lágrima e ele exitou. Sentiu um calafrio subindo a coluna, abaixou a cabeça e suspirou. Sentiu o transbordar, mas não o toque de sua alma. Ele precisava ser frio, precisava ser forte, o Lança [seu pseudônimo] não poderia falhar, mas já estava há dois dias sem dormir, pensando na sua vítima. Dois dias sem paz, acompanhado apenas por uma garrafa de Black e os sons dos carros que cortavam a noite. Por várias vezes pediu e até implorou para seu chefe deixá-lo fora dessa, mas ele era o melhor, não poderia haver erros. Em alguns segundos ele voltou no tempo, vida pobre, a mãe solteira, trabalhava dia e noite, ele aprendeu a se virar desde cedo. Veio à mente sua primeira missão, como ele tremia naquele dia, não é fácil matar alguém pela primeira vez, tremia tanto que depois do segundo disparo, no lugar do peito, acertou a orelha, isso claro, logo após beijar sua medalha da sorte que herdou de um traficante a quem dera suporte durante uma investida da polícia na periferia onde morava. Ele tinha critérios, nunca matou alguém que não merecesse. Sua mente confundia-se entre diversas informações. Cresceu sem nenhuma referência paterna, conheceu o pai depois da adolescência, mas nunca o procurou, sua revolta era muito grande, como pode um milionário “comer” a empregada e nunca ajuda-la em nada. Prazer e dor. Preferia continuar na miséria absoluta a mendigar migalhas ao velho. Sim ele o odiava do fundo de sua alma, mas daí a ter que mata-lo, há uma fenda enorme e incompreensível. Mas seu alvo estava ali, sentado e tomando café, ele nunca tomou café em sua companhia, sim, seu pai, quem lhe trouxe a esse inferno, quem nunca lhe aceitou como filho, quem nunca se quer lhe abraçou, agora na mira de sua lança, que vida, pensou, beijando a medalhinha e enxugando os olhos.
Para muitos aquele foi mais um simples e comum domingo, para ele, o encontro, início e fim de uma longa história.

a fraternidade é amarela

O lugar estava cercado e ele observava tudo pela fresta da cortina que abriu com os dedos. Estava realmente confuso. Caminhava em várias direções pela sala enquanto ao fundo policiais esbravejavam tentando pressiona-lo a se entregar. Sua mente se perdia na situação e ele não mais se dava conta que no centro da sala Jean Luck resmungava sentado e amarrado em uma cadeira, amordaçado com um lençol em tom baixo. Do lado de fora sua esposa olhava cabisbaixa pelo vidro do banco de trás do camburão.
Jean Luck, ah sim, ele era um francês que estava a passeio por aquelas bandas. Ficara amigo do casal dias antes em uma festa havaiana na praia do Bolinho. Nessas festas em que todo mundo se torna amigo. Chamava a atenção pela forma estranha que dançava, diferente de tudo que já havia passado por aquele quiosque. O fato de o casal ser o único que lhe aparecera facilitou o processo. Também, claro, pelo conhecimento da língua do biquinho, eles passaram um período pequeno em terras napoleônicas.
No dia seguinte lá estava ele na casa de nossos conterrâneos para bebericar e petiscar ao som suave de “Baton na cueca”. Como não entendia nada, adorava o ritmo. Talvez por que combinava com sua dança. Beberam e dançaram muito. Não, o erro do nosso parisiense não foi ter conhecido e festejado com nossos brasucas. Seu erro sim foi ter conferido o bilhete da mega-sena acumulada que ele comprou para ajudar um “ceguinho” que lhe oferecera na manhã anterior.
Claro que foi um ato de nacionalidade extrema, nenhum tupiniquim aceitaria que um francesinho qualquer saísse daqui com uma quantia tão alta para gastar em praias espanholas ou em carros alemães. De súbito, sem pestanejar, os dois saltaram sobre o turista que teve tempo de dizer uma só palavra; fudeu!!!
No dia seguinte, cedo, a esposa caminhou até o banco. Trêmula, encantoou o gerente e lhe disse em voz baixa que havia tirado o prêmio máximo. Ele rapidamente levou-a para uma sala privada. Tudo parecia correr bem, ela já conseguia ver as notas que brilhavam em sua mão. “Compramos um iate, afogamos o branquelo em alto mar e pronto. Talvez ganhemos até uma medalha inglesa por tal bravia atitude.” – lembrou das palavras do marido.
-Onde foi mesmo que a senhora comprou o bilhete?
-Como assim.
-Como assim o que?
-Onde comprei? E isso importa?
-Olha se importa eu não sei, mas são normas que devemos cumprir. Até para saber a propriedade real do ganhador. Algum problema?
-É... sim. Quer dizer, não. Não sei...
-Não sabe onde comprou o bilhete?
-Sei, quer dizer, não sei se sei...

Fora o bastante. É claro que o gerente estava blefando, mas em menos de meia hora a frota foi chamada e o quarteirão fechado. Jornalistas brotavam como moto-táxi em dia de greve de transporte urbano. Curiosos rodeavam e as notas iam se esfarinhando no pensamento da dama.
Quatro horas de negociação e ele saiu pela porta da frente. Rápidamente os soldados passaram por ele e entraram correndo dentro da casa trazendo algemado o francês que tentava inutilmente dizer algo.
-Cala a boca seu boca murcha.02 trás nossa bengala que eu vou ensinar a esse aqui como que é nosso pão francês.
O marido ainda sem entender abraçou-a.
-Finge que está chorando.
-O que?
-Anda logo idiota.
Os dois choraram compulsivamente, como duas criancinhas. O comandante aproximou.
-Vocês estão precisando de alguma coisa?
-Não, apenas descansar.
O marido não entendia bulhufas. A mulher enxugava as lágrimas.
-Se precisarem de algo me avisem, esse é o meu cartão.
-Obrigado.
Entraram por adentro.
Há poucos dias chegaram de viagem. Na bagagem, compras, compras e mais compras, além é claro, fotos, algumas com a presença do nosso compatriota “ceguinho”.
Quando questionada sobre o acontecido, ela apenas diz:
-Não precisávamos de tanto dinheiro, 60% estava de bom tamanho.
Cé la Brazil.
texto escrito para Cultblog

Thursday, April 24, 2008

The end

A luz acendeu e apagou por duas vezes. Ela contou os andares, treze, recontou as janelas, quarta, sim, era o sinal. Pela porta principal entrou correndo, o abraçou e com os olhos brilhando a esmeralda sorriu. A mão percorreu seu corpo e ele ainda calado suspirou. A face tremia, transmitindo uma emoção impar. Se olharam por alguns segundos, o tempo se tornou infinitamente perdido e como todo final feliz, um beijo contemplou a cena e provocou um derretimento completo em todos que sentados nas clássicas e enfileiradas poltronas vermelhas assistiam a tela, que gigante tomava a parede quase que por completa. Principalmente em Margareth que sentava sozinha em meio aos pouco mais de vinte expectadores do cinema da rua Abraão Coimbra.
Margô, como era chamada, linda, vinte e seis anos, jurou não mais amar na vida, prometeu que depois da última não mais conseguiria se entregar. Tola, pensou. Saiu correndo aos prantos chamando a atenção dos que ainda recobravam as energias e se levantavam estarrecidos. Sem olhar para os lados seguiu.
Entrou em casa evitando ser percebida, inútil.
- Que houve Margô?
- Nada não.
- Como assim, nada não? - Retrucou o segundo, limpando sua automática.
- Nada não.
- Margô, não vem que eu te conheço.
- Tava no cinema, foi isso.
- Sério? E porque não me chamou?
- Precisava ficar sozinha.
- E como foi a atuação do galã ae? – o primeiro de forma esnobe.
- Puts, porque você acha que eu estou assim? Nunca vi na vida algo de tão profunda emoção, claro, depois de Dostoievski. Alguma novidade na tv? – perguntou ela.
- Ainda no mesmo marasmo, acho que vamos ter que ser mais enérgicos. Vamos mandar um pedaço da orelha...
- Da língua – completou o segundo de forma irônica.
- Cala a boca, não fala besteira, a coisa ta só começando. E como ta o objeto?
- No quarto do jeito que você deixou.
Margô caminhou pelo corredor que dava até uma porta mal iluminada. Abriu, no chão ao lado de um prato vazio com uma fita prendendo a boca, com os pés e as mão amarradas estava ele, murmurando. Ela se abaixou, olhou-o bem nos olhos, com uma das mãos segurou suas bochechas.
- Você é um filho da puta mesmo hein!.. Como consegue? [ele murmurou novamente] Nunca havia chorado tanto na minha vida como hoje assistindo a porra daquele filme seu. Que atuação hein!... [levantou] Sabe... Estou decidida a pedir mais por você, depois daquela cena seu passe deve estar valendo mais... Ah ta em... Pode ter certeza.
Ele murmurou algo e ela retirou a fita.
- O que você disse?
- O cinema, ele tava cheio?
- Não muito, perto de umas trinta pessoas.
- Que bosta, é sempre assim. Quando que as pessoas vão começar a acreditar na merda do nosso cinema nacional? hein!, me diz?
- Sei lá... mas aposto que da para arriscar uma estatueta lá de Gramado.
- Gramado... grande merda.
Ela pôs a fita de volta e saiu do quarto. Ele virou para o lado e uma lágrima molhou o taco.
texto publicado - cultblog - 22 de abril

O grito

Seu nome, Sísifo. Poucos compreendiam o motivo, outros associavam sua alcunha ao fato dele ter nascido durante a festa de nossa senhora, no ducentésimo nono degrau da escadaria, debaixo de um sol escaldante em meio à multidão que rodeava sua mãe. Nesse dia, a missa teve de ser atrasada em duas horas, o menino não queria se desprender do ventre de forma alguma. A mãe, uma das romeiras, gritava [mas os gritos que lhe feriam os ouvidos é que tornava mais difícil o trabalho] e fazia força, uma força que só com muita fé para não desmaiar ali de repente. O padre rezava, e entre preces e dor, o projeto foi cuspido sobre o pano que uma das “parteiras” cedera. E assim veio ao mundo o nosso Sísifo, meio contra a sua vontade, envolto pelo cordão e pela multidão que feliz ovacionou-o quando o padre com ambas as mãos o ergueu para o alto.
Era a terceira vez que a mãe visitava o santuário e ainda viriam mais algumas pela frente. Promessas são viciosas, não dá para viver sem elas. Sempre surge um motivo ou outro para nos impulsionar, nos tirar da doxa inércia.
Há um ditado que diz que quem nasce de noite prefere o dia, da cama prefere o chão, e assim vai. Com nosso amigo não seria diferente, duas coisas ele cresceu abominando, ruídos e escadas, sempre usava rampas ou elevadores e para evitar ruídos ele desenvolveu uma técnica de isolamento total, isolamento tal que a partir dos sete anos não falava ou ouvia ninguém, como um vácuo que protege o ouvido e uma dobra que atrofia a língua. Sísifo seria o primeiro surdo-mudo por opinião. Esse fora um dos motivos que levaram sua mãe às escadarias outras tantas vezes. Coisa do caramulhão.
Foi dessa forma que pelo mundo ele foi passando, como um vácuo, inerte e indiferente, um objeto dentro de seu próprio orifício. Alguns pensadores acreditam que ele foi e é um dos seres mais felizes da terra, um objeto que pensa. Estudou artes, nunca apresentou um projeto por vontade própria e quando apresentava, os temas envolviam sempre silêncio ou não. Um dia sentiram sua falta, ele não mais estava lá.
Quem me contou sobre Sísifo foi um tio meu que disse ter estudado com ele na infância, mas que anos depois não mais o viu. Procurei saber mais sobre ele e sua vida, certamente ele deve ter muito para contar. Sabe-se que hoje em dia, já a beira de seus setenta anos, é possível encontrá-lo diariamente às duas horas e nove minutos da tarde na Galeria Nacional de Arte de Oslo. Sempre vestido com uma camisa de manga preta, um cachecol cor pastel, pálido e com a cabeça grande e raspada, Sísifo fica horas ouvindo música clássica com seu mp3 player, de frente para o quadro de Edvard Munch. Louco ou não, ele afirma ser seu auto-retrato.
texto publicado no site do cultblog - dia 15 de abril

Wednesday, April 02, 2008

O baile

A porta abriu e ele entrou ofegante, com alguma dificuldade tirou o casaco, encostou sua bengala atrás da porta e olhou ao redor, sentindo uma pequena vertigem. Quatro andares de escada são realmente quatro andares de escada nos dias de hoje. Tenho que mudar daqui, pensou mais uma vez. Em sua mão uma carta, que trazia na frente suas iniciais e nenhum remetente, na outra uma sacolinha com perecíveis. Sentou na poltrona, respirou fundo novamente, ligou a tv e abriu cuidadosamente a carta. Dentro um convite, só pode ser um engano, pensou, há anos ninguém lhe enviara nada, nem mesmo um catálogo da Ermes. “Convidamos a vossa senhoria para o baile de máscaras do próximo dia 12. Sua presença é indispensável”.
Baile de máscaras... Quanto tempo não ouvia falar. Veio-lhe a lembrança do glamour de seus melhores anos, tudo se combinava, e ele não se sentia tão só como agora, mas tudo passa, os amores e a força, tudo um dia passa, menos a lembrança. Com certeza seria mais um daqueles equívocos, como o jantar dançante de 1986. Deixou o cartão cair sobre a mesa de centro e cochilou hipnotizado pelas imagens.
O salão era imenso e todo em mármore. As pessoas, em sua esmagadora maioria mais velhas como ele, estavam devidamente mascaradas e caminhavam em todas as direções, lentamente é claro. Garçons com bebidas e canapés se multiplicavam no espaço. Aparentemente não conhecia ninguém, mas desde sua entrada fora tratado com todo requinte, como um convidado especial. Caminhou, lentamente, comeu pouco, bebeu e puxou papo com uma ou duas pessoas, mulheres de preferência, queria sentir o prazer das suas flertadas de outrora, continuava encantador em sua retórica que ora passeava pela filosofia antiga, ora pela literatura argentina e chilena, mas que não surtiriam muito efeito ali, principalmente porque todas estavam na verdade acompanhando um ou outro convidado. Este foi um dos fatos que lhe chamara a atenção, sem contar que ninguém sabia explicar porque e quem havia feito o convite para tal festa. E assim foi se desenrolando a noite.
Quando o relógio já marcava próximo a meia noite, alguém que se apresentou como o representante do anfitrião solicitou a todos que se reunissem no saguão principal que dava de frente para a escada que levava ao andar superior. Aos poucos todos foram se espremendo e aglomerando no tal local, a essa altura, ninguém poderia prever mais nada, mas continuavam curiosos com o desfecho. Do topo da escada à meia luz surgiu um vestido longo e branco com um véu que cobria o rosto, mas não escondia suas rugas e sua idade, é das nossas, pensou. Houve um início de burbúrio no salão que logo foi calado pela voz da “noiva” que cuidadosamente descia as escadas. Sua voz soou conhecida e ele deu um passo a frente para checar com maior cuidado. Percebeu que não apenas ele, mas todos os homens ao seu redor sentiam o mesmo. Sophia, sim, era ela, confirmou pela pinta no braço esquerdo e o nariz que fez volume por baixo do véu, há mais de quarenta anos que ouço falar dela. Fora uma de suas presas na adolescência, mas nunca havia relatado o acontecido para ninguém, também pudera, como contar para os amigos que havia se deitado com a moça que na época recebia o carinhoso apelido de Bina [abreviatura de carabina]. De certa forma todos também a reconheceram. Loucura ou não, mas ela havia convidado grande parte dos homens que um dia passaram pela sua vida, sem exceção. Até um rapaz que aparentava seus vinte e poucos anos, e que a essa altura, de vergonha se encolhia atrás de uma das pilastras.
A história que aparentemente não teria como piorar mais, piorou. Houve uma revolta geral, por parte das esposas que se encontravam no local, quando Sophia anunciou o real motivo do convite. No auge dos seus setenta anos, ela que afirmou com toda convicção que ainda sentia tesão, gostaria de mais uma vez sentir o prazer de ser amada por cada um dos presentes que em algum momento da vida a amou. Foi a gota d’água, Sophia que nos tempos áureos fora totalmente destrambelhada, provocava alvoroço por onde passava, mais uma vez o fazia. Algumas mulheres puxaram o braço do companheiro para retirá-lo da festa, outras começaram a passar mal com o canapé que certamente não estava tão mais saboroso assim, as que a reconheciam do passado, jogavam insultos e injúrias. E o mais engraçado, ninguém tinha coragem de descolar a mascara do rosto, inclusive ele. Fantástico, foi seu último comentário
A porta abriu e ele entrou ofegante, com alguma dificuldade tirou o casaco, encostou sua bengala atrás da porta e olhou ao redor, sentindo novamente aquela pequena vertigem. Tenho que me mudar, pensou mais uma vez. Sentou exausto, sentindo a segurança da poltrona. Olhou o relógio que marcava três da manha. Jogou sua máscara sobre a mesa de centro. Ainda perplexo com a festa, sorriu admirado, lembrando de algumas cenas. O tumulto foi generalizado, a polícia foi chamada e por conta disso algumas máscaras foram ao chão. Sorriu outra vez balançando a cabeça, até você Jonas, pensou, até você...


texto para cultblog 31/ 03/ 08

Monday, March 24, 2008

A vendinha

-Um copo d’água, por favor.
Levantei a cabeça antes mesmo de ele se aproximar. Da porta pude notar que se tratava de mais um andarilho. Tenho acompanhado a evolução deles nesses últimos anos, desde que assumi a vendinha que foi uma das dúnicas heranças de minha falecida mãe. Antes eles apareciam semanalmente, agora, de três a quatro vezes por dia. Começo a desconfiar que não se trate apenas de um problema econômico, prefiro não estender o assunto. Mas esse não era um dos comuns, não, esse não. Em sua mão trazia um livro e um disco de vinil, trajava um blazer já desbotado, e carregava consigo alem de um olhar firme, um sotaque castelhano fortíssimo. Se aproximou.
-Um copo d’água, por favor.
Ele tampou seu livro. Sua testa não suava, a mão um pouco suja e seca e em um dos dedos, o maior, um anel que ao entrar em contato com a luz do sol que vazava pela fresta do teto, causa-proveniente de uma das pedras que o filho mais novo do visinho havia jogado, refletiu e clareou a parede estampando letras que formaram a palavra “liberty”. Desviei o olhar para o vinil, conhecia, mas não me lembrava de onde. Tudo fazia pouco sentido, me sentia em algum filme tarantinesco.
-Um copo d’água, por favor.
Entreguei-lhe o copo duplo, completei com água do refrigerador, garrafa essa que havia reservado para mim, era segunda-feira e estava com uma ressaca de matar. Ele tomou posse do copo me olhou e sentou em uma das mesas de madeira de jatobá que havia no canto da venda. Nunca soube realmente o gosto da água, mas tenho certeza, ele sabia. Em pequenos goles foi calmamente bebendo, e enquanto o líquido lhe preenchia o corpo, lágrimas em seu olho esquerdo brotavam. Tentei exitar, decidi então por lhe fazer companhia.
-Está tudo bem?
-Claro.
-O que lhe trás aqui?
-Curiosidade.
-Pois pergunte.
Olhei novamente o disco que agora apresentava a contra capa, a primeira faixa estava muito bem circulada; “One of these days”.
-Não sei, acho que isso não se faz necessário.
-Estou no mundo há mais de quarenta anos, destes, mais de trinta vivo a caminhar, posso dizer que conheço praticamente o mundo todo, da miséria de Burundi ao luxo de Sundsvall, acredite, o melhor que há em cada parada é a possibilidade de uma nova partida, as variadas variações das pessoas e a diferente cultura, e digo mais, de tudo que conheci nessa vida nunca encontrei algo tão fabuloso quanto isso, [Apontou para tudo que estava sobre a mesa] nunca li algo tão bom quanto água, nunca bebi algo tão profundo quanto esse disco, e jamais encontrei outro gosto de uma literatura como essa.
Virei a capa do livro para mim. Por alguns segundos fiquei embriagada com o que vi. O livro de areia que Borges um dia falou, segurei-o por todos os seus lados, era realmente fantástico, folheei, tudo era como Jorge havia descrito, as páginas, o infinito, tudo.
-Onde conseguiu?
-Todos nós o temos... mas poucos se lembram onde guardaram.
Falamos muito sobre muitas coisas àquela manhã, continuamos e continuaremos muito a falar e a outros lugares visitar. Eu e ele. A vendinha... Essa ainda deve estar à espera de mais outros tantos andarilhos. Não acredito que voltaremos a passar por lá.
Texto para cultblog - 24/ 03/ 2008

Thursday, March 20, 2008

Em direção ao sol

- Um pé... Isso. Agora o outro... O outro e... Foi assim doutor, me lembro como se fosse hoje, me lembro de tudo, foi assim que tudo começou. Ainda posso ver o olhar umedecido e emocionado de minha mãe, seus braços abertos e nós dois separados por pequenos dois passos. Ela então me segurou e ergueu-me, como a um troféu. Eu tinha apenas onze meses doutor, mas lembro de tudo, de tudo. É engraçado isso, não é doutor? Sim, é muito. Lembro de tudo, lembro até a frase que ela sussurrou em meu ouvido assim que me deitei protegido em seu ombro, essa eu nunca esquecerei, “Você agora é livre, livre para ganhar o mundo”. Foi um choque doutor, o primeiro choque da minha vida, ninguém com apenas onze meses e três dias seria capaz de se sentir tranqüilo com tamanha oferta. A liberdade é muito perigosa doutor. Desde então passei a correr, corria para todos os lados, atrás dos bichos e na frente deles também, dentro e fora de casa. Nós morávamos em uma fazenda, perto de uma floresta e ao lado de uma bela montanha. O sol se punha bem de frente a minha janela e eu disparava todos os dias em sua direção, queria encostar minhas mãos, me aquecer em seu corpo, sentir sua textura. Meu avô era escritor, e sempre lia histórias para mim. Adorava sentar ao seu lado e cultivava minha atenção toda a ele. Um dia meu avô me chamou e me guiou por um dos corredores da casa, foi então que veio meu segundo choque doutor, eu já tinha meus dez anos. Abriu uma das portas da casa, eu nunca tinha ido aquele cômodo, era uma outra biblioteca, muito maior que a outra e com livros muito mais empoeirados. Eu fiquei estático e ele feliz, “Prepare a mala e avise sua mãe, será longa a viagem”. Estava tudo ali doutor, filosofias, artes, tudo. Eu passaria a sentir a liberdade correndo em meus pés e descansando em minha mente. O mundo dentro de uma sala e apenas o sol como desafio. Li muito doutor, li tudo que estava ao meu alcance, e cada vez corria mais. Até que chegou o dia doutor, eu sempre soube que ele chegaria. Peguei o último dos livros que me interessava naquela biblioteca – Don Quixote – olhei uma última vez para meu avô e corri com toda a velocidade em direção ao sol, fui para não mais voltar. Eu tinha que seguir meu destino doutor, o destino que minha mãe me dera, ganhar o mundo. A minha casa seria o mundo, os animais, as plantas, a água, a vida. Escutei algumas noites seguidas a voz de meu pai a me procurar por entre a mata, mas eu não queria voltar, eu não iria voltar. Tinha tudo que precisava; meus pés, um livro e o mundo pela frente. E durante esses nove anos, quatro meses e sete dias a flora passou a ser minha única hospedeira e a fauna, minha família. A liberdade, mais do que perigosa é necessária e de direito doutor. E é isso tudo o que tenho a dizer.
- Você sabe por que está aqui meu rapaz?
- Porque o doutor pediu para que eu viesse.
Ele pos a mão no seu ombro e continuou.
- Você sabe que está sendo indiciado?
- O doutor me disse.
- Você sabe por quê?
- Não.
- Você está sendo indiciado pela morte de mais de vinte e três homens, que nesses últimos nove anos, quatro meses e sete dias morreram em suas mãos. Você tem noção do que isso representa?
- Homens? Não doutor, não eram homens não, eram caçadores.
- Eram homens, como eu e você.
- Não se compare a eles doutor. Eles eram caçadores. E foram apenas submetidos à lei da selva, nada mais do que isso, nada mais.
- Mas você sabe que as ações e os moldes aqui são diferentes.
- São? O que o senhor faria se alguém que você ama estivesse sobre a mira de uma espingarda ou na iminência de um machado? Em doutor, o que o senhor faria?
Texto para cultblog - 18/03/08

Thursday, March 13, 2008

Rosinha

Essas coisas sempre acontecem comigo. De repente o telefone toca e pronto, tudo muda. Então atendo, do outro lado uma voz chorosa balbucia algo que não entendo bem. Curioso, sem compreender muito o que se passa, aguardo ainda alguma comunicação mesmo que codificada. Em meios aos soluços e snifs, uma frase vem à tona - A culpa é sua. O que? Isso mesmo, a culpa é toda sua – e o choro volta a agredir meus ouvidos. A culpa é minha? Como assim? [Penso]. Quem está falando?

A verdade é que não estava vendo sentido em quase nada do que ouvia, primeiro por não ter a menor noção de quem estava na linha, segundo, não há quem consiga se concentrar e atender o telefone em meio a uma sessão de desencapetamento na 36° igreja dos centuriões alados do senhor, a segunda maior da cidade, com mais de três mil seguidores e um equipamento de som de ultima geração que faria inveja a qualquer WoodStock e principalmente com um pastor que rodeado de seus discípulos a meio metro de ti grita, esbraveja e lhe empurra para todas as direções.

Mas isso foi tudo coisa da Rosinha, sim, a linda Rosinha. Não sou e nem me predisponho a ser fiel a ponto de passar por tamanha ridícula situação, mas por Rosinha sim. Trabalho como encanador, acho que não havia falado sobre, sou o que hoje se intitula “free-lance”, trabalho por conta, e, portanto quase sempre me enfio em confusão, não sei se uma tem a ver com a outra, mas o fato é que poucos imaginam os apertos que já passei em minha vida por conta de minhas visitas, as mulheres são muito perigosas, acredite. Bom, conheci Rosinha na casa de seus patrões e meus clientes, eu avisei que os canos estavam velhos, que fazer barba na pia de 1976 daria problema, eu avisei. Nunca contei a ninguém da casa que uma vez encontrei um vibrador preso no cano de descarga da filha mais nova, Rafaela, dezoito aninhos, confesso que passei a observá-la com outros olhos a partir desse dia. Mas Rosinha, que não tinha nada a ver com isso, não, ela não, seus encanamentos eram perfeitos, que curvas, tudo no seu devido lugar, vinte e três anos, faxineira, moradora da periferia, sonhadora, linda, um fogo à altura de minha caixa d’água e apenas um defeito, muito devota, tanto que para cada sessão de encapetamento nossa, deveríamos nos repurificar com uma breve mas cansativa visita a casa do senhor, e por isso me encontrava ali naquele maldito lugar na hora que o telefone vibrou.

Pedi licença ao projeto de Edir Macedo, retirei sua mão de meu ombro e me afastei um pouco do barulho – Como você disse? A culpa é sua – a voz agora já se encontrava mais firme – Maria, é você? E ainda troca meu nome, seu cretino. E então desligou.
Maria é a sobrinha de um amigo meu, mas essa é outra história. Na certa era apenas engano, fato comum nos dias de hoje. De longe, fiquei apenas a observar Rosinha, permanecia linda em meio aos encapetados que buscam a purificação defronte ao altar,e me pergunto, será que o espírito maligno que sai de nosso corpo caminha através das mãos para o corpo do pastor? Creio que sim, ele não parava de olhar em direção aos volumosos seios de Rosinha.

Texto publicado na Coluna "Labirinto Retilinio" - Cultblog

Monday, March 03, 2008

"cantico negro" - maria bethania



Com certeza, essa é uma das poesias que eu gostaria de ter feito.

Monday, February 18, 2008

as tais mineiras



entrevista sobre o show em homenagem a clara nunes.

produção audio visual: etcétera filmes

luiz salgado em BH

Show realizado em novembro de 2007 para o programa Música Independente - Rede Minas, no palácio das artes.

direção e edição: carlos tche